terça-feira, 24 de março de 2015

Esboçando reflexões sobre o parir

No dia em que eu encontrei dentro de mim a certeza de que estava na hora de engravidar, eu não sabia uma porção de coisas que me esperavam. Tinha uma ideia do processo baseada num saber observador do mundo que me cercou até o dia em que eu decidi engravidar. Por mais que sempre desejei estar grávida, ter um filho, construir uma família, a imersão na experiência só vem mesmo com ela. O saber anterior é bastante primário (no meu caso, ao menos), e nesse meu lugar de ignorância sobre a realidade atual do processo de engravidar e parir, eu imaginava que as coisas seriam mais fáceis.

Uma vez mergulhada, como já disse em outros posts, cruzaram meu caminho pessoas com uma linha de pensamento que vai contra a maré da grande maioria da sociedade brasileira. Pessoas ligadas à luta anti-cesárea desnecessária, contra os procedimentos desnecessários tanto numa cesárea quanto em um parto normal, a busca por uma experiência humanizada, a desvinculação da lógica medicamentosa no trabalho de parto e a valorização de um processo o mais natural possível, passaram a permear a minha rotina.

No entanto, ao embarcar nesse mundo, eu não imaginava que estaria travando uma guerra silenciosa com muitos ao meu redor. Já adianto que meus posicionamentos a favor da defesa do empoderamento da mulher e de seu direito de parir não significam que eu não respeite quem opta por um caminho diferente. Eu ando aprendendo nos últimos tempos (algo óbvio, mas talvez eu nunca tivesse parado para pensar) que um dos elementos mais importantes no processo é a mulher (e o bem estar do bebê, claro), e se é exercido seu livre-arbítrio, não estou em meu direito de julgar se sua escolha se difere da minha. Que isso fique claro.

Uma cesárea nunca havia passado pela minha cabeça mesmo antes de eu engravidar, mas sua existência não me assombrava. Como consequência natural da equipe que eu escolhi e dos profissionais dos quais eu me aproximei, essa reflexão tomou outros rumos e ganhou outras dimensões.

Existe uma vertente no Brasil (e eu não me aprofundei a ponto de dizer há quanto tempo essa discussão tem sido retomada) que defende o direito da mulher de protagonizar o próprio parto. As discussões giram em torno de uma série de elementos que eu vou elencar, mas não vou me atrever a me aprofundar, porque ainda estou em processo de aprendizado:
  • Há dados estatísticos alarmantes que apontam para o número elevado de cesáreas realizadas no Brasil - tanto no setor público quanto no privado -, com evidências que apontam para um quadro que envolve questões (principalmente) de ordem econômica e cultural, no qual diversas mulheres são submetidas a um procedimento cirúrgico muitas vezes desnecessário.
  • Li que a Organização Mundial de Saúde recomenda que o índice de cesáreas em um país seja de 15%. O Brasil é um dos maiores recordistas em cesáreas, principalmente na rede privada, onde esse número supera os 80%.
  • Na rede privada (e agora estou falando especificamente de minha cidade, Belo Horizonte) já existem hospitais construindo suítes para parto normal, no entanto, é praxe a realização de uma série de intervenções, também na maioria das vezes desnecessárias, tais como episiotomia, aplicação de ocitocina para acelerar o trabalho de parto, colocar a gestante na horizontal durante o período expulsivo (o que dificulta o trabalho de parto, pois esta não é uma posição que favorece a gravidade para o bebê descer), aplicação de anestesia (mesmo quando não é solicitada), dentre outras coisas.
  • Nessa lógica também não é valorizado o contato pele a pele imediatamente após o parto e na maioria das vezes o bebê mal passa pelos olhos da mãe e é submetido a uma série de procedimentos.
  • O cordão umbilical é cortado imediatamente (claro que em uma cesárea é necessário para que se finalize a cirurgia na mãe, estou me referindo ao parto normal) e há estudos que comprovam a importância de esperar que o mesmo pare de pulsar, pois nesse processo há uma troca significativa de nutrientes e vitaminas para o bebê (há mais sobre isso, como eu disse, ainda estou em processo de aprendizado).
  • Muitas das vezes, nessa lógica medicamentosa, o processo do aleitamento materno também é deixado de lado e um bebê que poderia amamentar, é submetido ao leite superficial sem necessidade.
  • Se a gestante não se aproxima de uma equipe humanizada, a probabilidade dela não ser informada acerca dos elementos acima e ser submetida a uma cesárea ou a procedimentos desnecessários em um parto normal, é bem grande, enorme.
  • Parir não é algo simples.


Enfim, a lista é grande e eu realmente não desejo – pelo ao menos nesse momento – militar veementemente acerca do tema.

Quero mesmo voltar na guerra silenciosa.

Tenho para mim que, apesar de todo o amor em volta, de todo o desejo de que tudo corra bem por parte dos nossos entes queridos e amigos, no fundo, bem no fundo, a gravidez é muitas das vezes um processo muito solitário. Já explorei isso antes sob outros aspectos, mas para além do fato óbvio de que quem vivencia a gravidez na carne é a mulher (no sentido dos desconfortos, do peso e das maravilhosas sensações), ando chegando à conclusão de que do gestar ao nascer muito mais coisas estão envolvidas do que sonha nossa vã ilusão de um processo mágico e tranquilo.

Apesar de eu ser uma pessoa muito mais dos sentidos que da razão (algo que eu adoraria mudar se estivesse ao meu alcance), estou envolta por uma leitura racional do mundo, pelo universo do saber, do conhecimento e da ciência. E talvez me faltem elementos e mais estudos para que eu possa defender meus pontos de vista sempre sob a ótica da racionalidade e a partir de dados científicos, o que frequentemente implica em meu posicionamento ser visto como mais um ato de paixão que razão.

Cansa a sensação de que constantemente eu tenho de oferecer dados comprobatórios do que eu defendo, porque no final das contas é a minha personalidade sensível que sempre parece se destacar quando eu me projeto para o mundo.

Talvez eu me envolva ainda mais com esses estudos e linha de pensamento. Apesar de eu vir do universo do cinema, que se tornou o ofício no qual atuo como docente e pesquisadora, talvez eu mude o rumo e o Antônio, além de ser o elemento mais transformador da minha alma, também me traga de volta o exercício da escrita (não acadêmica) e me ajude a direcionar meu foco profissional para outro lugar, quem sabe.  

Fato é que se por um lado não podemos entrar em uma caverna e lá vivermos as angústias e delícias da gestação e do parir, por outro também não acredito que tenhamos de oferecer respostas concretas a todos os questionamentos que o mundo nos impõe. Para que meu filho nasça como eu desejo parece não bastar que eu deseje. E não basta, claro. Tudo pode acontecer e pode ser que daqui a uns meses eu volte para relatar a cesárea que eu tive de fazer. Se eu tiver, se minha equipe me disser que eu terei de fazê-la e me explicar detalhadamente os motivos, assim será.

Tenho grande respeito pelos homens e mulheres que têm batalhado por uma outra experiência do parto, seja como profissionais da saúde, como militantes, como gestantes, pais, etc. Não é fácil ir contra a maré, e, que engraçado, ao me aproximar deles percebi que eles não estão contra, eles defendem a mudança de uma lógica que se tornou a dominante sem precisar ser. A cesárea não é inimiga, é bem mais profundo que isso.

A questão é que a nossa sociedade abraçou o parto como um evento hospitalar e medicamentoso e toda a aura de segurança que a ciência exercida assim nos passa, ganhou dimensões desproporcionais. Aos poucos eu esboço essas ideias um pouco atabalhoadas com mais critério... por hora eu digo que não enxergo um movimento anti-ciência, anti-médicos, e de adesão hippie em um universo sem conceito acadêmico e científico. É uma pena que essa batalha tenha ganhado vestes assim aos olhares do mundo.

2 comentários:

  1. O mundo em que estamos vivendo agora, está passando por muitas transformações, que vão do individual para o coletivo, cada vez com mais força,porque fatos estão nos levando a um consenso, e não há o que retrucar contrariamente, salvo as exceções que fazem parte da lógica ou ilógica da vida.Sua postura frente ao seu momento de parir, não me parece pertencer somente à sua paixão versus razão.Parece-me que estão ambas equilibradas, uma vez que você se aprofunda muito no saber como este processo se desenvolve e já escrevi em outro comentário, que você o estuda com esmero e aplicação.Não o sinto também solitário, porque você o tem dividido conosco, salvo alguns contatos com o Antônio, que lhe pertencem por inteiro e são somente seus.Você pode se referir a eles, mas o sentir, é prerrogativa somente sua.No meu primeiro parágrafo, quis referir-me às muitas mudanças pelas quais passamos agora.A mulher ser a protagonista de seu próprio parir , é uma delas e é legítima, porque a cesárea pertence ainda à aqueles contextos condenáveis, sem que estejam presentes os requisitos científicos, para os quais ela é indicada.E , quando você Ucha, se insurge contra este status quo, significa ser esta a legítima e dígna rebelião, daqueles que desejam um parto natural, porque estão aptos para ele.E esta sua soberana decisão, vem com a força de trazer para as gestantes ,uma cultura, que se estacionou no passado e, por pouco não correu o risco de se extinguir, em prol de uma medicina mecanizada e mercantilista.Que muitas possam seguir seu exemplo, porque, tirando o caso em que as cesáreas são realmente necessárias e indicadas, que você possa parir o Antônio, com a simplicidade e beleza com que as nossas mães nos pariram e que indicam o verdadeiro sentido da vida.

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  2. Há que se estudar tudo de novo a cada geração. O que era simples passou a ser complicado em relação à saúde pública. A universalização dos serviços de saúde, via SUS, veio muito depois da crise do Estado do bem estar. Então, muitos médicos querem mesmo viver do esforço privado e buscar clientes nos hospitais públicos. Não pode ser a regra. No plano individual cada um escolhe seu plano e roteiro de ação.
    As pessoas andam intolerantes demais, se você defende uma posição é porque já tomou a sua decisão. Todos nós devemos compreende-la. Não há muito o que comentar. Estou muito segura, você tem feito tudo direitinho e meu neto já é um príncipe.
    Talvez possamos fazer uma comparação com os tipos de filme. O parto deve ser um filme de amor, não um drama ou um suspense...

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