Spoiler alert:
peço desculpas (ou não, hehehe) aos cruzeirenses, mas preciso narrar um momento
lindo com meu filhote preto e branco.
Estou
enfurnada em casa lutando, entre as fortes dores na coluna e a necessidade de
finalizar a primeira versão da minha tese para a banca de qualificação do meu
doutorado. Gestantes e mães vão entender o conflito: agora, já no oitavo mês,
ficar muito tempo na mesma posição se tornou algo da ordem do impossível. Pelo ao
menos no meu caso, entre 14:30 e 15:00 (com essa precisão, juro) eu sou
acometida pelo maior sono que um ser humano pode sentir, logo, escrever tem
sido um martírio.
Pra
complicar, meu objeto de estudo é nada mais, nada menos, que o cineasta Michael
Haneke, um alemão mais austríaco que tudo, com um cinema gélido cuja essência é
a falta de comunicação entre as pessoas, mergulhadas em famílias cindidas e
basicamente sem lugar para o afeto. Resumo fraco, mas só para constar, é bem
mais complexo que isso. A questão é que eu estou vivendo o momento mais pleno
da minha vida, de construção de uma família e à espera da chegada do meu maior
amor. Já seria difícil falar de Haneke em outras circunstâncias, agora então...
Fugi
rapidamente para relatar dois momentos deliciosos que vivi com meu Antônio
nesta semana de clausura total.
Quarta-feira,
dia de jogo da Libertadores. Como o Galo saiu, o campeonato se tornou
irrelevante, a não ser pelo fato de o time azul jogar com o River Plate (sempre
bom lembrar que seu nome completo é Club Atlético River Plate). Eu estava muito
cansada e com dores no corpo e decidi ir dormir, por alguns motivos:
1)
Jamais assisto jogo desse time;
2)
Como boa atleticana que sou, estava sem esperança deles perderem em um
Mineirão lotado, depois de terem ganhado fora, de 1 x 0.
Fui
deitar... meu marido estava fora e eu e Antônio resolvemos dormir. De repente, ouvi
os primeiros gritos e cornetas. Pensei: droga, pra terem cornetas só pode ser
gol “celeste” (termo que eu detesto, vale dizer... aliás, tudo que o
compreende, não dá pra curtir a cor azul, praticamente banida da minha vida). Liguei
a TV e era gol do River. Pensei: os azuis vão ganhar de 4x1. Desliguei a TV.
Mais
tarde, mais gritos. 2x0... com certa alegria, tentei dormir de novo.
De
repente, berros... 3x0!!!!
Aí
eu perdi o sono, claro. Liguei a televisão quando faltavam 2 minutos + os acréscimos.
Pensei: vai ser 4x3 e desliguei de novo, afinal, esse ritual claramente estava
dando certo (apesar de se configurar como algo da ordem da insanidade mental, é
gostoso vivenciar o futebol como se não fosse um esporte no qual não há muita
previsão possível além do preparo físico, mental e técnico da equipe. Resta ao
torcedor doente encontrar certos procedimentos pouco convencionais de sobrevivência.
Foi gostoso saber mais tarde que meu marido estava executando as mesmas ações no
bar “pra não dar azar” – de acordo com ele, estava de costas para a televisão e ficou imóvel na
mesma posição até o jogo acabar, só pra garantir a manutenção do ritual e não
interferir no destino).
Liguei
de novo a TV quando faltavam 30 segundos e resolvi me entregar para a
felicidade. Quando o jogo acabou, liguei o hino do River em meu celular e
regozijei com as entrevistas do Fábio e outros espécimes indesejáveis.
Antônio
enlouqueceu. Rafael chegou em casa e o pequeno dava loops na minha barriga a ponto de doer. Rodava pra um lado, rodava
pro outro, chutava e sei lá mais qual movimento Toquinho executava.
Depois
de curtirmos a linda derrota, nada do Antônio dormir... tive de levantar da
cama e andar no escuro na sala falando baixinho com ele pra acalmar, acariciar
a barriga e acalentá-lo, como se ele já estivesse aqui em meu colo. Aos poucos
ele foi sossegando e fomos os dois dormir. Eu, com um sorriso no rosto, por
guardar dentro de mim o atleticano mais lindo do mundo.
****
Ontem,
após mais um dia de fortíssimas dores nas costas, segui na batalha
eu-computador-Haneke-gestação. Em determinado momento, comecei a quase babar na
frente do aparelho, sem conseguir concatenar uma frase sequer com qualquer
sentido. Percebendo a iminência da queda, resolvi tomar um banho.
Apaguei
a luz (fica a dica, é uma delícia tomar banho no escuro) e deixei a água morna
batendo nas minhas costas. Não relaxei totalmente, claro, pois fiquei anotando
no vidro do box o que faltava pra terminar a tese.
Quando
voltei ao escritório, ainda faltava alguma prática para me conduzir de volta à
concentração da escrita. Decidi ouvir umas músicas, cantar, pra ver se o ditado
funcionava e eu espantava os males da trava mental total.
Fiz
uma seleção sem muito critério, com algumas músicas do Rufus Wainwright,
Stealers Wheel (Stuck in the middle with you) e: Across the Universe, Put it there, You're going to lose that girl, Distractions
(tudo a ver com meu momento, diga-se de passagem) e Dear Boy, nesta ordem.
Antônio
esboçou movimentos, mas na hora em que os Beatles e depois o Paul começaram a
cantar, ele protagonizou um balé na minha barriga. Ia de um lado pro outro como
se dançasse e cantasse ao som da minha voz desafinada no meio da música. Como se
o pequeno reconhecesse aquele universo que tanto diz respeito ao seu pai, sua
dindinha e a mim.
Ele
me colocou em uma situação delicada, porque eu precisava encontrar frieza de
espírito para escrever sobre uma família disfuncional que comete suicídio (O Sétimo Continente, 1989) e lá estava
eu, com os olhos marejados por curtir alguns minutos de verdadeira dança e
reconhecimento com o meu filho.
Sim, temos mais um atleticano doente e um beatlemaníaco que já já vai iluminar nossa vida aqui fora.