terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Dorme, meu filho

Antônio nasceu chorando um choro baixinho. Olhou para mim e seu pai e ficou em um suave murmúrio que revelava o pouco que compreendia da maior transformação pela qual passaria em sua vida. Do ventre para a luz do dia. Eram duas e vinte e sete da tarde.

Quando em minha barriga, tinha seus horários de agitação maior, mas pelo que me lembro mexia fora desses momentos também. Sempre muito educado, respondia de pronto aos meus chamados, no que hoje eu reconheço como aquele sorriso gostoso que ele lança para mim quando nossos olhares se encontram.

Sua chegada foi tão intensa que eu não sou capaz de lembrar como foi nossa primeira madrugada. Após um semestre de trabalho intenso, noites mal dormidas porque nenhuma posição fazia meu corpo descansar e mais de vinte horas entre o início do trabalho de parto e sua fase ativa, eu estava esgotada. E não fazia a menor ideia do que me esperava logo ali.

Demos sorte do alojamento estar vazio e seu pai dormiu na cama ao lado da minha. Antônio dormiu enroladinho na manta, grudado em mim. Lembro que na segunda noite eu e seu pai comentamos como parecia um bebê tranquilo. Depois, numa autorreflexão ainda em tempo, pensamos ser melhor não cantar vitória antes da hora.

Viemos para casa e sua primeira noite já foi agitada. Era meu aniversário e as duas avós planejaram um bolo para mim, e de repente umas vinte pessoas enchiam o apartamento. Ainda atordoada do parto, eu fiquei a maior parte do tempo em seu quarto com você e as pessoas entravam aos poucos para te ver.

Era uma quinta-feira. Seu pai ficaria conosco de licença somente até domingo, mas eu ainda não havia pensado nas implicações disso. Eu estava completamente aérea, algumas coisas eu retive, outras não sou capaz de narrar.

Mas me lembro muito bem que nesses poucos dias que o tivemos o tempo todo conosco, foi um Deus nos acuda. Antônio chorava muito. Logo nos primeiros dias demonstrou ser dono de seus desejos e lutar por eles com afinco. O tal rolinho com a manta e o “shhh” em seu ouvido se mostraram totalmente inúteis. Aquele vídeo do americano fazendo mágica com vários bebês parecia efeitos especiais criados em Hollywood.

Ali começava uma saga que até agora, quando Antônio completa cinco meses de uma deliciosa existência, não teve fim.

Antônio até que dorme. Não chora muito mais. É uma doçura de criança. Fica de bom humor a maior parte do tempo, ri para todos, raramente estranha alguém. No entanto, acorda, em média, sete vezes por noite.

Há exatos cinco meses eu não sei o que é dormir mais de três horas seguidas. E três horas deve ter acontecido no máximo duas, três vezes. O padrão são duas, estourando duas horas e meia. Na maioria, de uma hora e meia em uma hora e meia.

Quando em minha barriga eu dizia que Antônio dormiria no berço desde o início. Eu tinha receio dele se tornar uma criança dependente de nossa cama.

Antes da concepção e durante a gravidez nós fazemos inúmeras afirmações peremptórias que cairão por terra em frações de segundo. Não adianta fingir humildade. Todas as mulheres fazem isso.

Perto de seu nascimento eu já havia desistido da ideia. Para mim seria absolutamente impossível ficar longe do Antônio. Na primeira noite eu tentei ajeitar seu carrinho para ele dormir ao meu lado, no entanto, compramos um carrinho de passeio que eu odiei por muito tempo, pois é muito desconfortável para recém-nascidos. Hoje eu o adoro.

O carrinho não funcionou, então eu fiz uma barricada em nossa cama e você dormiu ao nosso lado. Dormiu é eufemismo. Você acordava a cada trinta minutos. Quarenta. Cinquenta, quando muito. Mamava durante horas.

Entrei para um grupo de mães no celular e ali fiz amizades. Varava a madrugada conversando com a mãe acordada da vez. Eu estava presente em todas as conversas. Aprendi a ver a noite passar até que relativamente rápido.

Dez dias depois eu lembrei que tínhamos um berço portátil (cabeça de mãe recente não funciona. Em privação de sono então, nem se fala). Montei ao lado de nossa cama e tive a ilusão de ter se iniciado nova etapa.

Ter um bebê que não dorme bem te coloca numa posição muito peculiar diante da sociedade. Há diversas parcelas e todas elas têm suas dicas, julgamentos e gradações de percepção de sua situação.

Eu descobri que mães disputam qual filho dorme melhor. Aqueles que dormem a noite toda recebem glórias e invejas brancas. Aqueles como Antônio, chega uma hora, recebem olhares de comiseração tal qual aquela figura no Vigilantes do Peso que durante a pesagem semanal perdeu somente 100 gramas.

Fiquei totalmente obcecada em ensiná-lo a dormir. O livro “Soluções para noites sem choro” eu já li duas vezes. Há ali algumas palavras de alento, tais como a reflexão da importância do sono REM para os bebês no que tange ao desenvolvimento cerebral. Dizem que bebês que dormem muitas horas seguidas podem ter um desenvolvimento mais lento.

Aí você se agarra a essas coisas e começa a achar que seu filho vai ser superdotado, só pode. O livro fala em duas, três acordadas para bebês de quatro, cinco meses. Há noites em que isso acontece, assim como há noites (a maioria delas) em que Antônio acorda de oito a dez vezes num período de oito a nove horas.

É enlouquecedor.

Para mim, que atualmente desconheço o significado de uma noite de seis horas seguidas (ao menos isso), o sono de Antônio se tornou meu Santo Graal.

E como fazer para aqueles que dormem entenderem isso?

Infelizmente temos a péssima tendência a não sentir empatia por aquilo que não vivemos. Claro, não vamos generalizar. Eu recebo os “tadinha”, “nossa, você precisa dormir” e até “como posso te ajudar?”, das pessoas mais próximas. Mas no fundo, no fundo, a Terra continua girando e meu problema é apenas o meu problema. No dia seguinte ninguém lembra que eu não dormi e eu tenho que ser simpática, querer receber visitas, ir em eventos e viver uma vida normal. No entanto, a cada mês que passa, me sinto mais próxima da loucura.

Nesses cinco meses já perdi a conta de tudo que eu fiz para o Antônio dormir direito.

E aí o mundo cai de braçada na sua desgraça, porque opinião é uma coisa que todos têm e a-do-ram dar, não é? Uns dizem, outros insinuam, outros escondem no olhar achando que eu não percebo e há algumas poucas almas que realmente entendem.

“Meu Deus, esse menino mama demais, você precisa espaçar as mamadas!”
“Dá bico”
“Não dê bico de jeito nenhum, senão ele vai parar de mamar no peito!”
“Faça cama compartilhada”
“Tira esse menino da sua cama, eu li uma reportagem, você pode matá-lo sufocado”
“Leva pro quarto e deixa chorar”
“Não deixa chorar, é maldade”
“Nina até ele estar totalmente adormecido”
“Não nina de jeito nenhum, senão você vai virar escrava dele”
“Não dê o peito, ele não pode dormir no peito”
“Deixa dormir no peito, põe num colchão no chão e saia devagar”.
“Ele dormiu muito à tarde, está descansado”
“Ele precisa dormir muito à tarde, senão não dormirá bem à noite”
“Deixa ele ficar cansado de dia”
“Será que seu leite é suficiente?”
“Será que seu bebê não tem um problema mais sério?”

Eu já ouvi todas essas coisas, algumas mais de uma vez, de pessoas muito próximas a pessoas que eu nunca vi pessoalmente.

As pessoas realmente acreditam saber o segredo do meu Santo Graal.

Se tem uma coisa que eu descobri nesses cinco meses é que não existe manual, não há bebê igual, uma coisa que funciona numa casa não vai funcionar na outra.

Antônio já dormiu ao meu lado, já dormiu no berço portátil, já tirou várias sonecas no colo das avós, há dois meses foi para o seu quarto e dorme em seu berço. Há dois meses eu comecei uma rotina que já passou por diversas variáveis.

Já comecei às 19:00, às 20:00, às 21:00. Já deu certo por um, dois dias.

No início era assim:

1. Shantala (descobri que Antônio entende a massagem como um código para ficar absolutamente elétrico) no escuro, coloquei música clássica, a cantiga alemã que meu pai cantava para mim, canções de ninar brasileiras, MPB, som branco (barulho de chuveiro, chuva, floresta, etc);
2. Banho também com a luz bem baixa, falando baixo, dizendo para ele cada passo do que iríamos fazer e que ele iria dormir;
3. Amamentação (muitas vezes dormia aí para acordar assim que eu o encostava no berço);
4. Ninar cantando, fazendo “shhh”, tocando música, olhando pela janela, dançando.

Na primeira semana houve um dia em que ele dormiu quatro horas.
Comemorei.
Muito, muito tola.

Já entrei para um grupo de sono e saí, porque não estava aguentando mais todos os bebês evoluindo com a rotina, menos o meu.

Enfim, comecei uma rotina nova, que às vezes dá certo, às vezes não:

1.Entre 19:00 e 19:30 lemos uma historinha com Antônio balançando as perninhas ávido para morder o livro;
2. Ouvimos e cantamos Galinha Pintadinha;
3. Dou um pouquinho de chá de camomila na colher;
4. Assim que ele começa a bocejar, dou o banho e coloco uma música tranquila, muitas das vezes eu canto junto (aqui ele ainda acha que é hora de farra, chuta a água, ri com a cara mais moleque do mundo, mas diariamente sai fungando meu peito e com chorinho de sono);
5.Amamentação;
6.Berço. Aqui mora o perigo. Essa rotina me foi ensinada por uma amiga muito querida, também mãe de um Antônio (ao que parece, é mal do nome). A regra é: ninar jamais. Colocar com ele ainda um pouco desperto.

Aprendi que virá-lo de lado funciona. Que um bonequinho que eu comprei na gravidez virou seu companheiro, Antônio o abraça e dorme sereno.

Mas... cada dia é um dia.

O regime é militar. Ele precisa dormir ao menos três sonecas ao longo do dia: uma em torno de 10, 10:30, outra entre 12:30, 13:00 e por volta de 16:00, 17:00. Quando isso não ocorre, em 90% das vezes a noite é um inferno.

Eu faço esta rotina noturna há duas semanas. E ele segue acordando de duas em duas horas nas primeiras duas, três acordadas... no restante, de uma em uma hora. Às vezes eu consigo ninar sem tirá-lo do berço, dando o bico (sim, cedi ao bico, joguem suas pedras). Às vezes ele dorme assim e cinco minutos depois abre o berreiro. Às vezes abre o berreiro de cara. Às vezes dorme tranquilo por três horas.

Aí vem outra questão: se eu dou o peito, ele dorme rápido. Mas se eu dou o peito ele não aprende a dormir sozinho de novo. Se eu dou o peito, eu levo cerca de 15 a 20 minutos entre a hora que ele acorda e eu deitar de novo. Se eu não dou o peito ele chora até ficar elétrico de novo e quando eu volto pra cama eu estou elétrica.

As pessoas repetem com frequência: durma quando ele dormir.

Me desculpem, mas isso só funcionaria com ele recém-nascido, porque eu estava sempre pregada (e nessa época sempre tinha gente aqui, ou seja, não o fiz). Agora eu tenho momentos mais desperta e não tem jeito, por mais exausta que eu esteja, não tenho um botão de desligar em que basta deitar na cama que eu durmo. As pessoas de fora realmente julgam isso possível.

Há outro fator interessante a se mencionar. Me tornei psicopata com barulho. Odeio motos, carros com som alto, ônibus, pessoas chapadas na rua, dias de jogo de futebol (mesmo do Galo, quem diria). Eu achava minha rua tranquila até Antônio nascer. Depois de sua chegada eu percebi que os tacos de madeira do meu apartamento rangem demais. Que a descarga do banheiro é muito alta. Que nós respiramos fazendo um barulho absurdo.

Na época em que ele ficou no meu quarto eu e seu pai ficamos escravos. Às vezes o jeito de deitar na cama o acordava. Como colocávamos o controle remoto no móvel da TV, a descarga do banheiro, o vibrador do celular, ou, e eu juro que Antônio veio da fábrica com um radar, o simples fato de eu deitar na horizontal o acorda.

Além do sono absurdo, o maior problema de ter um bebê com dificuldade de emplacar no sono é eu ter me tornado uma pessoa que pensa nisso o tempo inteiro. Sair atrapalha. Visita atrapalha. Eventos atrapalham. Dá vontade de ir pra um quartel militar e eu acredito que apenas as mães de filhos pequenos me entenderão, porque as que não têm não sabem e as mães de filhos maiores esqueceram como é.

Há também as palavras de alento que saem pela culatra. Quando Antônio acorda cinco vezes numa noite a impressão que se tem é que eu dormi bem, “muito”. Pois bem. Eis uma breve descrição de minhas noites mais críticas atualmente:

Vai dando sete da noite eu já fico alerta. É necessário que Antônio desacelere. Não dá pra fazer muita estripulia, senão ele fica excitado de um jeito quase irreversível. Se eu estiver na rua, fico estressada. Se tiver alguém aqui, fico estressada. Se alguém ameaçar pular ou cantar na frente dele, tenho vontade de fugir pra um hotel e só voltar no dia seguinte.

Vamos para a sala, leio uma historinha, coloco Galinha Pintadinha e dou o chá. Ele arrota, vamos ajeitando suas coisas para dormir. Levo para o banheiro e coloco uma música leve (ultimamente tenho ouvido Adriana Partimpim, é bonitinho). Quando eu o coloco no trocador da banheira ele já começa a sacudir as pernas como se aguardasse um trio elétrico passar.

Dou o banho sem reagir às suas bagunças, falando mais baixo, cantando a música para ele. Seco, coloco a fralda, troco a roupa e ele já começa a reclamar. Quando eu o pego no colo ele começa a fungar em meu peito (adoro isso) e ficar com um chorinho manso. Vamos para o seu quarto.

Penteio seus cabelos já no escuro e vamos para a poltrona de amamentação. Há dias em que Antônio mama com vigor, outros em que mama só um pouquinho. Já achei que isso faz diferença, mas por enquanto nada me provou o contrário. Há dias em que ele já dorme aí, em outros vamos para o berço e ele adormece relativamente rápido e há aqueles em que me dá um verdadeiro baile durante uma hora, até duas.

Antônio dorme.

Como passei o dia com ele, nessa hora eu já estou com fome. Seu pai chega do trabalho e eu peço que vigie a babá eletrônica para eu tomar banho e comer. Há dias em que funciona, em outros ele acorda quatro, cinco vezes chorando assim que eu seguro o garfo. Perdi a conta de quanta comida fria eu comi nesses cinco meses. Há dias em que seu pai consegue fazê-lo dormir. Em outros ele chora como se eu tivesse morrido e eu tenho que acudir. Não sei se consigo fazer o método do choro assistido.

Há cerca de um mês combinei com seu pai que nas primeiras acordadas, quando ele ainda não tiver ido dormir, ele tentará niná-lo. No entanto, poucas vezes dá certo. Já conseguimos, é fato, mas na maioria das vezes eu não consigo voltar a dormir enquanto não vejo que Antônio dormiu.

Tomei banho, comi, vou deitar. Tem acontecido de eu ficar elétrica e custar a dormir. Quando durmo, meia hora depois ele acorda. Tem acontecido também de eu ficar psicótica com a babá eletrônica: só consigo dormir virada para ela, às vezes cismo que algo está obstruindo sua respiração ou simplesmente acontece de eu olhar e ele acordar.

(Versão noite boa) Antônio dorme às 20:30. Eu como, tomo banho e converso com seu pai sobre o dia. Deito às 23:00. Às 23:15 Antônio acorda. Seu pai vai lá, eu ouço pela babá eletrônica. Antônio torna a dormir, são 23:25. 23:30 ele acorda em prantos, tenho que dar o peito. Ele dorme, são 23:42. Eu deito novamente. Resolvo olhar internet no celular, custo a dormir. São meia-noite e uns quebrados, eu durmo. 01:40 Antônio acorda. Seu pai vai lá, ele esgoela, é hora de mamar. Antônio mama e adormece relativamente rápido. Volto para a cama, são 2 da matina, eu já babando de sono. Não sei quanto tempo levo para dormir, mas durmo. 4:15 Antônio chora. Seu pai dorme, tem de trabalhar no dia seguinte. Arrastando, eu vou ao seu quarto, tento dar o bico e fazê-lo dormir sem peito. Não consigo, pois mal lembro meu nome e não tenho energia pra passar por toda a catarse. Dou o peito, Antônio dorme relativamente rápido, são 4:30. Volto para a cama, fico olhando a babá eletrônica até dormir. 6:50, horário precioso... se eu não ponho no peito rápido ele acorda para o dia. Ponho no peito e rezo, quase dormindo em cima dele. Ele mama avidamente por dez minutos e dorme, vitória! Deito de novo às 7:00, já quase desperta, mas consigo cochilar um pouco. Uma hora depois ele acorda novamente e quando eu chego no berço recebo aquele sorriso delicioso que quase me faz esquecer como eu queria dormir 18 horas seguidas.

(Versão noite punk) Começo a rotina como todos os dias, Às vezes saímos de dia, Às vezes não. Às vezes ele dormiu as três sonecas de dia, na maioria delas pulou alguma. A saga começa às 20:10. Ele dorme 50 minutos. Vou lá, dou o bico, cantarolo uma melodia, viro ele de lado, dou o boneco, ele dorme. 21:03 está Antônio chorando como se algo terrível tivesse acontecido. Seu pai vai, tenta ninar, chega a pegá-lo no colo. Eu chego, ele olha pra mim com cara de “acho que ele está com fome” e vamos para a almofada de amamentação. Antônio mama pouquíssimo e dorme.22:00 tudo começa novamente. Dou o bico, mudo de posição, ele dorme. 23:10 seu mundo cai. Tento por o bico, ele cospe. Tento ninar, ele chora magoadíssimo, tento mudar de posição, ele vira o corpinho e olha pra mim desolado. Tento lutar, Antônio vence. Vamos pra poltrona. Dorme. Consigo dormir 23:45. 00:18 Antônio chora. Seu pai vai, consegue fazê-lo dormir. Eu, no quarto, vidrada na babá eletrônica. 00:27 uma nova hecatombe. Peito, já estou exausta. Dorme até 2:30. Chora, esgoela, peito. Dorme. 4:35 chora de novo, mama. 4:49. Dou o bico, mudo de posição, dorme. 5:03 dá escândalo. Dou o bico, ele se revolta contra mim. 5:05 ele dorme. Deito quase desmaiando na cama. 6:10 Antônio chora. Vencida, dou o peito, rezando para ele dormir ao menos mais uma horinha pra eu conseguir dialogar durante o dia. Ele chora, olha os bichinhos no quarto, ri pra mim, mama e solta o peito. Eu resolvo lutar com todas as minhas forças (leia-se 7% da minha energia vital) e consigo, uma hora depois. São 7:10, Antônio finalmente cede. Eu deito, cabeça elétrica. Olho o celular, respondo mensagens das mães amigas. Com sono de novo, durmo lá pra 7:30. 7:57 Antônio acorda, joga o bonequinho pra cima, olha o berço, reconhece o território e me chama. Vou lá e o dia começa.

Agora multipliquem isso aí por cinco meses.

Algumas coisas me preocupam: saúde mental, física e voltar a trabalhar. Tudo interligado.

Não sei se me fiz entender, mas creio que com essa narrativa aqueles que me conhecem poderão compreender melhor quando fico de mal humor, silenciosa, quando não quero receber visitas, sair de casa, sorrir. Espero que os leitores que ou me conheçam ou conheçam outra família com bebês, pensem 1.987 vezes antes de fazer um comentário acerca da situação da mãe de um bebê que não dorme bem. Por melhor que seja a intenção, na enorme maioria das vezes o comentário só servirá para irritar, frustrar, magoar e incitar o ódio dessa mãe às raias da loucura.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

De mim

Ninguém me avisou o quão solitária é a experiência da maternagem.

Talvez porque o mundo cobre da mulher um estado de graça constante. Sentir tristeza em meio a um processo tão mágico se configura como uma espécie de crime social.

Mas, e aí vem o mais curioso, ao me fundir em dois, eu e meu bebê, eu me transformo realmente em dois sentimentos que passam a conviver, quase que diariamente. Antônio é luz, é repouso, é encanto, é beleza, é amor, o mais puro do universo. Sua mãe é a pessoa mais afortunada por tê-lo em sua vida.

No entanto, o eu mulher, ao fundir em dois, se torna um ser cindido e os pedaços acabam espalhados pelo chão e na loucura que eu me transformo, desaprendo a catá-los.

Sim, sou um ser pleno por ter Antônio. Mas também não compreendo o que restou de mim depois que ele saiu do meu ventre e eu ganhei um corpo de experiência passada.

O nascimento – e isso ninguém ousou me dizer – é morte em vida. Nasce um ser, morre uma barriga. Fica um vácuo, que nos primeiros dias é sentido inclusive fisicamente, como se seu corpo ficasse oco, como se os órgãos tivessem descolado e flutuassem nesse lugar que precisa se ressignificar e não sabe muito bem como.  

Eu me torno dois, mas também me ‘destorno’. Destorno porque uma vez mãe, a maioria absoluta das pessoas não me vê mais mulher, não me vê mais sentimento, não me vê mais carência, não me vê solidão, não me percebe triste. Muitas vezes sequer me vê.

Me destorno e me ‘desveem’. É necessário o neologismo, pois no lado negro da maternagem (sim, mundo, há um lado negro) as palavras existentes por vezes se tornam insuficientes para expressar esse lugar/não-lugar.

Soa dramático, sim, soa. Mas é assim que é.

Acho que estou me repetindo, mas que seja, esse espaço aqui é meu.

Antônio saiu de minha barriga e eu não posso chamá-lo de meu. Não devo, não é correto. Antônio é um ser do mundo, um divino e adorável ser do mundo. A minha missão (e a de seu pai) é ensiná-lo a partir, mostrando para ele que nós somos a possibilidade do retorno eterno. O berço, o acalanto, o abraço, o ouvido, o silêncio.

Ser mãe dói, porque a gente passa nove meses acompanhando nossa carne se distender e gerar um outro. Sim, um outro, ainda que dentro de nós. Fundido, mas em iminência de se soltar.

Ser mãe é aprender a se destituir de seu eu primário e ter sempre aquele outro como prioridade absoluta. É não chorar diante dele (ao menos tentar) e inundá-lo de sorrisos, pois ele acabou de chegar e ainda falta um tanto para ele aprender que o mundo é muito diferente daquele ventre que o nutriu e acolheu, daquela voz que cantou para ele todos os dias com a mesma intensidade e amor.

Estou aprendendo a ser mãe e não sei se existe diploma nessa faculdade.

A questão aqui não é esse eu-ser-mãe em processo, que se forma dia a dia a cada delícia e agrura que vier.

A questão é o eu-mulher esquecido pela sociedade que, ao que parece, não aprendeu ou desaprendeu que deixar nascer outro, deixa solidão dentro.

Infelizmente, mundo, gerar alguém me fez constatar que falta humanidade em nós.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Esse tal de puerpério

Você se prepara.

Matricula na hidroginástica, na yoga, faz acupuntura, fisioterapia, melhora a alimentação, participa de grupos, lê relatos de parto, se abre, se blinda.

Você espera.

Filma a barriga todos os dias, conversa com o bebê o tempo todo, conta os dias para o próximo ultrassom, fantasia como será o rostinho dele.

O tempo passa mais rápido do que você imaginava e ele chega. Lindo, saudável, bochechudo e trazendo consigo o maior amor que você já ousou sentir na vida.

Os primeiros dias passam e você acompanha a madrugada, falhando em cada tentativa de dormir.

Seus olhos teimam em fechar e você desconhece o tal instinto materno, não faz ideia da razão de seu choro.

Dar ou não chupeta, mamadeira? Insistir na dolorosa amamentação?

Os dias passam, os meses passam e você não consegue finalizar uma frase quando ele dorme, porque suas sonecas diárias, quando longe de seu colo, costumam durar dez minutos, e de noite, quando ele enfim aceita o berço, tudo o que você consegue fazer é tomar banho e dormir também. Porque daqui a 40 minutos ele vai chorar de novo e querer mamar e não sair do seu colo.

A máxima proferida pelas mães de bebês mais velhos a mães recentes é “vai passar”.

Quando você ouve isso, tudo parece tão distante... sua memória, sua capacidade de dormir, cozinhar, tomar um banho mais demorado, responder um e-mail, fazer as unhas. Por vezes você se pega questionando “o que eu fiz da minha vida? ”, para logo em seguida ser consumida pela culpa.

Você acha tudo surreal, as vozes parecem assombrosas, a luz, a TV incomoda, o silêncio se torna seu bem mais precioso e tudo o que você quer é que ninguém tire seu filho do seu colo. Você quer ficar colada nele, ainda que aquela coisinha indefesa por vezes te pareça terrivelmente assustadora.

O mundo continua em seu ritmo normal e tudo o que você quer é gritar ‘para tudo que eu pari!”. Ninguém escuta, todo dia tem visita, luzes acesas, pessoas vigiando sua luta pra amamentar.

Você tenta descobrir um jeito de enfiar seu filho de volta na sua barriga.

No desespero você olha seu bebê e pede pra ele trocar aquele olhar confidente, ‘ei, estamos no mesmo barco’. Mas ele não fixa o olhar e às vezes vira os olhos de forma preocupante e você se desespera, o que tem de errado com meu bebê? Aí você descobre que o desespero se tornou seu confidente e é assim mesmo, seu sistema nervoso ainda está amadurecendo.

Seu filho não é mais só seu, senti-lo passa a ser possível a todos e todos querem fazê-lo ao mesmo tempo. ‘Me devolve’, você quer gritar, mas não grita. Você sofre calada, ninguém seria capaz de entender. As pessoas chegam em sua casa e não olham pra você. Elas lavam as mãos e tomam seu filho. Ninguém te pergunta se você está bem.

Você sempre sonhou em amamentar, mas seu peito arde, dói, fere. Quando seu filho mama você sofre, como isso pode estar certo? Você se lembra dos cursos, da pega correta, da foto da Cássia Kis amamentando um garoto de três anos que estava pendurada lá na Casa de Parto onde seu filho nasceu.

Você procura ajuda. Vai no principal banco de leite da cidade e percebe que a pega estava errada, a posição errada e não é recomendado passar nada. Você não consegue fazer seu almoço, mas também não consegue almoçar, porque seu filho insiste em fazer cocô, soluçar, clamar por você sempre na primeira garfada. Quando você finalmente consegue, você come correndo pra pegá-lo de volta, porque ficar longe dele dói.

Um belo dia, de tão exausta, você resolve amamentar deitada no meio da madrugada porque você não consegue ficar sentada sem cochilar. No dia seguinte seu peito arde em brasas. Aparece um ponto branco e você percebe que entupiu um ducto. O pavor toma conta. Você vai à mastologista e ela te passa uns medicamentos com a indicação de ficar três dias sem amamentar no peito machucado. Você não consegue tirar muito leite com a bomba e o que consegue seu filho cospe do copinho. Você não quer dar mamadeira, Deus que livre dele largar o peito.

Não tem como amamentar em paz, sempre tem alguém em cima de você ou comentando sobre seu peito, seu leite, seu jeito de amamentar, ou falando sobre outros assuntos. Você cogita fugir com seu bebê pra uma caverna. Se pergunta como alguma coisa vai passar, nada vai passar, vai ser assim pra sempre.

Em prantos você procura uma solução para o seu peito e acha um artigo com um passo a passo para desentupir o ducto. Você toma um banho quente e enquanto isso seu bebê chora muito no colo do pai, que te olha tenso. Você fica tensa, você precisa tirar o leite, mas ele não vai tomar depois. Você esteriliza uma agulha e fura o ponto branco. Você sacode o peito, põe na bomba e um tempo depois põe seu filho pra mamar. Dói. Dói um absurdo. Você chora muito e se culpa. Você lembra daquela droga de livro que diz que seu filho e você estão fundidos e acha que causará um trauma nele por estar amamentando tão arrasada.

Os dias começam a passar. Seus peitos melhoram. Estão chegando os primeiros 45 dias e você propõe ao seu marido uma volta na rua, sob pena de você enlouquecer se não o fizer. Você arruma o bebê e vocês dão uma única volta no quarteirão. Algumas pessoas olham com ternura, as pessoas te veem, você ainda existe. De repente tudo não parece tão terrível, vocês conseguiram dar a volta no quarteirão.

Um dia você está com seu bebê no colo na sala e seu marido acorda e vem dar bom dia.

Antônio sorri.

Você não acredita. Seus olhos se enchem de lágrimas, Antônio despertou para o mundo.

Como um passe de mágica você consegue amamentar, interagir com seu filho, sair na rua. Receber visitas passa a ser agradável. Você reconhece aquele choro: é fome, é sono, é dengo. Aos poucos você vai se ajeitando até o dia em que você finalmente consegue cortar os cabelos e fazer as unhas.

De repente tudo ficou pra trás e lá está você sonhando em engravidar de novo.

Há quatro meses e cinco dias Antônio nasceu e mudou tudo.

Há quatro meses você se sentiu a mulher mais feliz do mundo. Bonita, fêmea, pulsante.

Uns dias depois você achou que havia mergulhado num caos eterno.

Até que passou. Meu puerpério passou e eu sobrevivi.

Até esqueci algumas coisas e hoje sou eu a proferir o mantra “vai passar”.

Hoje há novos desafios, ele ainda não dorme mais de duas horas e meia seguidas, mas o sorriso que você recebe todas as manhãs compensa cada segundo da sua vida inteira.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Antônio do lado de cá – relato de parto

Uma série de siglas nos acompanharam nesses últimos meses: GO (ginecologista), US (ultrassom), DUM (data da última menstruação), CPN (Centro de Parto Normal, da Maternidade Sofia Feldman), DPP (data provável de parto), TP (trabalho de parto). Sua DPP era 19 de julho de 2015, mas algo me dizia que seria no dia 15. Repeti isso obsessivas vezes para o seu pai e alguns profissionais que nos acompanharam de perto. Não quis espalhar para não deixar ninguém ansioso.

Dissemos aos nossos pais e familiares que você viria na segunda quinzena, mais para o final de julho. Na realidade, baseado no período em que sua chegada é considerada a termo (pronto para vir), você poderia nascer entre 28 de junho e 2 de agosto, imagina espalharmos essa previsão, seriam 5 semanas de tensão ao redor, ainda que nossa enfermeira obstétrica tivesse me dito que o mais comum em uma primeira gestação é o bebê nascer em torno da 39ª semana (o que daria 12 de julho).

Eu havia marcado minha qualificação no doutorado para o dia 8 de julho, às duas da tarde. Até a semana anterior, estava tranquila de que você viria depois, no entanto, julho chegou e umas dores novas apareceram junto. Dormir bem não é algo que uma gestante conheça no final da gestação, mas até que aquela coisa de cochilar sentada porque não tinha posição demorou a acontecer, só lá pra 36ª, 37ª semana.

No final de semana dos dias 4 e 5 de julho fui acometida por inúmeros episódios de mal-estar. Dor nas costas que irradiava para a pelve, endurecimento da barriga e muito, muito refluxo. Dormir virou luxo e você começou a ficar menos agitado, o que certamente me preocupou. Bateu aquela sensação de que você estava a caminho e começamos a aventar a hipótese de uma mudança geral nos planos.

Na madrugada de domingo para segunda eu perdi um pouco de sangue e mandei uma foto nada agradável de se ver para a nossa E.O (outra sigla, enfermeira obstétrica). Ela disse que podia ser o tampão mucoso, ou seja, um indicativo de que o TP estava próximo, mas nada muito concreto, poderia ser a qualquer hora, como ao longo da semana seguinte. Tive uma insônia louca e fiquei sem posição na cama, então fui para a sala e lancei todas as notas dos meus alunos e finalizei as pendências na faculdade em que trabalho – no fundo, a gente sabe.

Segunda-feira, dia 6 de julho. Eu havia sido convidada a participar de três bancas de conclusão de curso pela manhã. Seu pai viu como eu estava sentindo dor e ofereceu para eu não ir (ele era o orientador das bancas), mas eu não ia deixar a última pendência para trás. Tomei banho e fui na raça... as dores cada vez mais fortes. Cheguei na sala dos professores e brinquei com os presentes: “achei que ia parir esta madrugada”.

As bancas foram ótimas, no entanto, eu pedi inúmeras vezes para ir ao banheiro e tive de ficar de lado na cadeira, pois as dores estavam cada vez mais agudas. Saí de lá às 13:30 e uma companheira de banca ofereceu carona. Quando descíamos para o carro dela, eu tive de parar no meio do caminho para esperar a onda de dor passar... aí bateu no coração: será que chegou a hora?

Chegando em casa, sua tia Rosane nos aguardava com um rapaz que iria pendurar os quadros em seu quartinho, a última coisa que faltava para a sua chegada. Eu não podia deixar que ela percebesse que eu possivelmente estava iniciando meu TP, mas acho que não fui muito bem-sucedida nisso. Tive de ficar sentada e claramente demonstrava muitos incômodos para mexer. Fui ao banheiro e saiu mais sangue. Mandei mensagem para o seu pai, que ficou apavorado e falou para eu ligar pra E.O. Segurei a onda e esperei ficarmos sozinhos para ligar. (Depois a Rosane me contou que saiu de lá e ligou para a minha sogra - sua avó -, dizendo que eu não tinha mais condições de ficar sozinha. Graças a Deus não deu tempo de muito alarde).

Liguei para nossa E.O-anjo, um capítulo à parte nessa história (uma pessoa que dá sentido ao termo parto humanizado), e ela pediu que eu anotasse o intervalo das dores. Eram 15:10. Anotei até às 16:00. Em intervalos de 5 em 5 minutos (por vezes 5:30, 5:20...), vinham dores que duravam de 30 a 40 segundos. Nesse dia, às 20:00, ela viria aqui em casa com sua equipe para assinarmos o contrato de parto e conhecermos os profissionais que com ela trabalham. Liguei, relatei as anotações e ela disse serem consistentes com um princípio de TP. Ofereceu para vir antes e eu aceitei, estava precisando de alguma confirmação, acho que entrei em estado de negação, afinal, faltavam dois dias pra qualificação!

Ela chegou aqui em casa às 17:00 e após presenciar meu processo de contrações, ofereceu pra fazer um exame de toque. Aceitei. Eu estava com 4 para 5 centímetros de dilatação! Ela soltou um “é, Antônio não vai esperar sua qualificação” e falou para eu avisar seu pai e verificarmos os últimos preparativos. Não acreditei, fiquei mais uns minutos em estado de negação. Liguei para o seu pai, avisei que ele podia finalizar o trabalho, pois ainda ia demorar, mas para ir preparando o território. Antônio estava a caminho! Coração bateu forte, quando conversei com seu pai a ficha caiu um pouquinho.

Voltei para a sala, demorei um pouco pra lembrar o que faltava. Peguei a lista de nossa doula com o que devíamos comprar de alimentos, fui imprimir nosso plano de parto, deixei um bilhete despistando para a nossa ajudante que viria no dia seguinte e embarquei no início de nosso TP, que aqui em casa durou até cerca de uma da manhã.

Nossa mala da maternidade já estava pronta (a de nós três, agora somos três!).

Seu pai chegou umas 18:30 e eu estava espremida no sofá com nossa E.O, que pacientemente aguardava a saga dos 5 minutos (mal sabia eu o que isso iria virar) e auscultava seu coraçãozinho pacientemente de tempos em tempos. Seu pai foi correndo para o escritório lançar as notas de seus alunos. Ele é coordenador do curso e você escolheu justo o dia final de lançamento de notas para chegar... professores e alunos bombardeavam seu e-mail com perguntas e reclamações e ele ficou até irmos para a maternidade tentando adiantar o trabalho para ficar integralmente conosco na parca licença paternidade dele.

Eu e nossa E.O cochilávamos entre as contrações, que eu já achava doloridas, na minha ilusão de que não iria piorar tanto assim... próximo a uma da manhã ela ofereceu pra fazer mais um toque: 6 de dilatação. Podíamos ir para a Maternidade Sofia Feldman ou esperar mais um pouco. Essa avaliação é delicada, porque eu não tinha ideia se iria demorar mais 2, 5, 11 ou 18 horas... ela me disse que eu não estava fazendo uso dos recursos para alívio da dor (banho, andar, etc...) e eu percebi que ficar em casa estava me deixando muito antenada. Eu pensava na faxineira, em nossos pais, no que ficou pendente, em seu pai trabalhando alucinadamente no quarto ao lado.

Pedi para irmos para o Sofia e ela ligou reservando uma suíte na CPN. Sua chegada estava se tornando cada vez mais palpável. Seu pai foi levando as coisas para o carro e fomos. Fui retorcendo pelo caminho e hoje eu penso que foi a melhor coisa termos ido, eu não ia suportar aqueles 30 minutos no carro com as dores mais fortes do que estavam naquele momento.

Ligamos pra doula e uma vez no Sofia nossa E.O foi fazer minha internação e eu fui para o chuveiro. O alívio foi imediato, apesar do frio que estava fazendo. Entramos no quarto Angela Gehrke. Ao lado o quarto Leila Diniz estava sendo limpo, pois uma mulher havia acabado de parir. Nossa E.O me apresentou para a chefe do CPN e as enfermeiras de plantão e ao passar na porta do Leila Diniz, lembro que vi sangue pra tudo quanto é lado e me deu um leve frio na barriga.

Ofereceram pra nós o outro quarto quando estivesse limpo (lá a banheira é bem maior), mas quando ficou pronto eu já estava entrando em certa agonia e não quis sair do Angela. O chuveiro retardou um pouco as contrações e decidi sair.

Aí se inicia uma narrativa que não tem muita hora certa, duração e linearidade. Eu havia lido inúmeros relatos de parto, visto mil vídeos, ido em grupos de gestantes, participado de grupos online de discussão e por alguns momentos quando a coisa começou a pegar, eu arrependi de tanto estudo. A comparação me parecia inevitável. Que partolândia o quê, parto orgásmico??? Tudo me parecia distante e irreal. As dores se intensificavam, mas não saíamos da frequência de 5 minutos, o que também colaborou para meu estado de consciência.

Lembro-me do filme A Hora do Lobo, de Ingmar Bergman. O personagem de Max von Sydow padece de uma insônia terrível. Em determinado momento, na casa isolada em que mora com a esposa, no meio da madrugada, ele a convoca a experimentar a angústia de esperar um minuto inteiro passar. A sequência dura um minuto exato. Em um silêncio ensurdecedor, aguardamos a passagem dos 60 segundos enquanto o personagem interrompe algumas vezes para dizer quanto já foi. Parece uma eternidade.

Eu sabia que a cada contração, após cada avanço, eu tinha de aguardar 5 minutos (ou 300 segundos) para uma nova etapa do processo.

Nossa doula chegou às 4 da manhã, desse horário me lembro bem, pois eu olhei para o relógio (que, aliás, devia ficar fora do alcance das gestantes). Seu pai e nossa E.O cochilavam e eu havia descoberto a bola de pilates, a melhor invenção para TPs. Após me cumprimentar com um doce “oi, meu amor”, ela revolucionou o ambiente e deu sentido ao termo ‘doula’ (do grego, “mulher que serve”). Ela apagou as luzes, acendeu uma luzinha amarela no canto da parede, colocou um aquecedor próximo a mim, pegou um óleo com uma essência que é a cara dela, ofereceu comida para seu pai, me trouxe um copo d´água e iniciou os trabalhos.

Eu não sabia, mas ali se seguiriam mais 10 longas horas e exatos 27 minutos até você chegar. Nossa doula sentou ao meu lado e até eu iniciar o período expulsivo, quando ela deixou seu pai comigo e foi filmar a sua chegada, ela massageou as minhas costas pacientemente em todas (repito, todas) as minhas contrações. Calmamente ela passava as mãos no óleo, levantava meu vestido e fazia uma massagem circular enquanto eu retesava o corpo inteiro e sentia que não ia aguentar muito tempo. Essa massagem fez toda a diferença do mundo... ainda levemente consciente, me lembrei de ter lido sobre esses métodos de alívio e de pensar em como isso faz sentido. Depois lembrei que no sistema privado as mulheres ficam na horizontal e comentei com a doula que julgava isso criminoso. Eu já estava com muita dor, imagina isso sem conforto?

Uma vez no Sofia fiz uso de tudo que podia e embarquei em todas as sugestões das duas (E.O e doula): bola, chuveiro, banheira, rebolado, caminhada, deitada de lado (essa, disparado, a pior), banqueta, rebozo. Seguíamos, religiosamente, de 5 em 5 minutos. Não me lembro quando, mas fizemos outros toques... acho que foram dois, de 8 e de 9 pra 10 centímetros.

Eu lembro de ter olhado as horas três vezes após a chegada da nossa doula: em torno de 7 da manhã, meio-dia, uma e pouca da tarde. Em uma dessas vezes ela me disse para ignorar o relógio... eu seguia num misto de muita consciência e mergulhos num estado em que não conseguia falar nada mais, apenas acenar “sim” ou “não”.

De tempos em tempos ela me oferecia algo para comer. Lembro que comi duas gelatinas, tomei água de coco, água e uns três biscoitos. Em algum momento, ela me deu uma batata Ruffles que me deu um enjoo tremendo. Lá para as tantas, quase em vias de desistir, ela colocou um pedaço de Diamante Negro na minha boca para eu recuperar as energias. Na minha concepção, não tinha energia mais, mas o chocolate desceu muito bem.

Seu pai apanhou um pouco de mim. Acho que a intimidade fez com que eu descontasse nele o nervosismo inteiro. É difícil demais descrever as sensações que nos acompanham em um trabalho de parto, até porque, já percebi que cada mulher é de um jeito. Há as que gritam, há as que se calam e ficam em estado meditativo, há os partos que duram duas horas, há partos que duram vinte, como o nosso (na realidade, em TP ativo foram 13). Fato é que quando a manhã veio chegando, eu comecei a experimentar uma exaustão física e emocional enorme. Não saíamos dos 5 minutos.

Não lembro mais em qual momento (sei que foi após o rebozo), nossa E.O sugeriu romper a minha bolsa para tentarmos acelerar o TP. Eu estava na posição deitada, com uma dor absurda, e ela havia acabado de fazer outro toque (e como dói o tal do toque). Aceitei. Bolsa rompida, nada muito diferente aconteceu. 5 minutos... 5 minutos... 5 minutos... Nossa E.O. de vez em quando soltava: “Antônio, siga as águas”... na hora não sei o que pensei, mas olhando em retrospecto, isso é bem bonito, só que você teimava em não ouvir.

Em alguma hora que não me recordo mais, nossa doula me levou pra passear lá fora. Eu parava de 5 em 5 pra gemer e notei um misto de curiosos olhando, com outros que certamente já haviam passado por aquilo e passavam por mim encarando meu processo com total naturalidade. Nosso obstetra estava em uma mesa com outro médico e acenou pra nós sorrindo enquanto eu agarrei numa pilastra. Me encanta esse clima do Sofia Feldman. Claro, nem tudo são rosas e há deficiências típicas de um hospital do SUS, mas me sinto muito afortunada por toda a assistência que tivemos.

Lá pelas tantas, acho que o dia já havia amanhecido, nossa E.O. sugeriu ocitocina. Fiquei com medo, já havia lido que a ocitocina sintética acentua muito as dores pela sua ação de intensificar as contrações, mas ela me aliviou e disse que colocaria uma dose mínima. Lembro de tê-la ouvido dizer para a enfermeira do Sofia que era pra colocar em 5 (tudo ao redor era 5), mas lá na frente, acho que no expulsivo, eu a ouvi mencionar o número 24, algo assim.

A ocitocina não surtiu muito efeito. Deixou as contrações mais doloridas, é fato. Assim que senti o líquido gelado em minha veia, veio uma contração muito, muito doída. Mas não saímos dos 5 minutos. Meu corpo começava a desfalecer. O processo é todo muito intenso... a gente sente a barriga endurecendo, o corpo vai retesando inteiro, as dores vão das costas (próximo à região renal) e irradiam para a pelve. Mais para o final, eu sentia o Antônio retorcendo, empinando a bundinha e parecia que eu ia rasgar inteira. O pavor tomou conta.

No último toque, que constatou que eu estava com 9 para 10 centímetros de dilatação, nossa E.O., com uma feição preocupada, disse que sua cabeça não estava na posição correta para nascer. Meu mundo caiu. Confesso não recordar direito da sequência de diálogo... creio que ela queria que esperássemos para ver o que acontecia, mas naquele ponto eu já estava à beira do colapso físico. Ao findar de cada contração eu quase dormia de tão exausta e ainda que enclausurada nos 5 minutos, a impressão era da dor me acompanhar sem trégua.

Fui ficando nervosa e extremamente consciente. Pensei: se sua cabeça está na posição errada, de que adiantam as contrações? E para piorar, vieram os puxos. Eu já não sabia se eu forçava de propósito ou se fazer força havia se tornado o único movimento possível. Nossa doula disse que baseada nos sons que eu emitia (muito guturais, diga-se de passagem), eram os puxos. Os lapsos de consciência me puxavam pra baixo: eu estava com dores lancinantes e elas não iriam me levar a lugar nenhum. Se eu tinha chegado ao ponto dos puxos, de que adiantaria fazer força se você não iria descer?

Entrei assumidamente em pânico e em contato com um lado meu que eu não gostaria de reencontrar. Xinguei os três de todas as formas. Seu pai, super carinhoso, não conseguia acertar. Ele me tocava, eu pedia para não tocar. Ele me fazia uma pergunta, eu respondia urrando com impaciência. Uma hora nossa doula chegou no meu ouvido e me disse palavras de incentivo, que eu estava quase no final, que faltava pouco. Eu percebi que já devia ser a quarta vez que ela dizia, olhei furibunda pra ela e disse: “têm 3 horas que você está dizendo isso”.

Aí chegou a vez de ser grosseira com a E.O., o ser mais calmo do mundo. Entrei na banheira, meu sonho de parto, mas ela era muito estreita e me obrigou a ficar numa posição horrível na horizontal, e as dores intensificaram. Eu gritava como nunca na vida, emitindo sons primitivos que depois me deixaram com muita vergonha de andar pelos corredores do CPN. Ela se posicionou de frente para mim e observava a sua saída iminente a cada contração. Eu vi em seu olhar a preocupação e aquilo me desestruturou completamente. Pedi pra sair da banheira. Ela ofereceu a banqueta e eu, um outro eu saído das cavernas, vociferei: “eu detestei a banqueta”.

Não lembro como, mas fui parar na banqueta. Seu pai se posicionou atrás de mim, nossa doula (que também é fotógrafa) ficou diante de mim, ao lado da E.O., e ali eu protagonizei momentos que, hoje, são hilários, mas na hora foram muito trágicos.

Conversando com outras mães recentes, descobri que, à exceção das abençoadas que passaram de forma plácida pelo período expulsivo, nós falamos coisas que nos aproximam da insanidade e do patético nesse momento. Não me recordo tudo (ainda bem), mas sei que eu comecei a pedir anestesia, pedi socorro, falei que não tinha competência para parto natural (lembro-me do olhar de tristeza da doula nessa hora), que eu estava fracassando, e enlouqueci: pedi cesárea. Depois seu pai disse que aquilo me salvou, pois o fez perceber que eu estava em estado de delírio completo, então ele ignorou.
Eu comecei a dizer que os três estavam me ignorando, que eu havia desistido, que não tinha a menor chance de eu conseguir, até porque você não estava na posição. No momento mais insano, eu agarrei o braço do seu pai e pedi pra ele enfiar um pano com clorofórmio no meu rosto. Pedi pra me doparem.

É necessário ter coragem para relatar esses momentos aqui. Lembro-me de ter lido relatos de parto em que esses momentos ou eram muito romantizados ou as gestantes foram abençoadas, porque não me recordo de alguém relatar algo assim tão sofrido. Acho que essa romantização também me atrapalhou durante meu TP. Sei que tudo se resumia no fato de sua cabecinha não estar na posição. Eu tinha certeza que daria errado e no final eu seria submetida a uma cesárea ou algo do tipo, então pra que prolongar o sofrimento?

Por fim, depois de muito chilique meu, nossa E.O. decidiu chamar uma obstetra para fazer uma manobra e colocá-lo na posição correta. Eu esbravejei mais um tanto, pois soube que ela estava num atendimento e gritei que não conseguiria esperar por ela. A passagem dos 5 minutos se tornou um calvário.

De repente, e talvez eu estivesse na porta de entrada da tal partolândia, pois eu não lembro das reações dos três, nossa doula e nossa E.O. deram um grito “coroou!!!!”, o que significava que sua cabecinha tinha começado a aparecer, ou seja, você tinha chegado na posição correta. Como um filme (e, repito, esse é o tempo suspenso em que eu me encontrava, não faço a menor ideia da duração real dos fatos), a obstetra apareceu na porta. Graças à sua consulta, ela não chegou a tempo de movê-lo, você o fez por nós.

Ali eu atingi uma outra dimensão. Lembro que ao ver a reação das duas o meu corpo mudou e eu reencontrei a leveza (ainda que estivesse em meio a uma dor excruciante). Veio outra contração e elas me disseram pra sentir sua cabeça, do jeito que eu pedi no plano de parto. Antônio, eu nunca serei capaz de descrever o que foi sentir a beiradinha de sua linda cabecinha. Sei que ali eu devo ter perdido umas dez toneladas e ganhado uma injeção inacreditável de energia. Acalmei e parei de xingar tudo e todos. Chorei e disse “vem, meu filho”.

Uma enfermeira do Sofia apareceu e agora havia quatro mulheres observando a sua chegada e seu pai colado em mim. Nossa doula ofereceu pra me mostrar sua cabecinha chegando e tirou uma foto. Ainda estava tão pouquinho pra fora que eu quase esmoreci outra vez, mas resolvi aguardar os 5 minutos. Não sei quanto tempo durou o expulsivo. Sei que o tal círculo de fogo que eu havia lido nos relatos mais parecia um maçarico aceso em mim, pois eu senti cada centímetro de sua cabeça despontando e doeu muito, no entanto, eu agora havia me tornado uma mãe obstinada em te ver.

Não sei quantas contrações foram necessárias, mas me lembro da nossa E.O. pedindo o carrinho de parto (algo do tipo) pra enfermeira e as luvas. Ela sorriu e disse “como eu quero vestir essas luvas”. E nós sorrimos, eu sorri novamente. Depois de sabe-se lá quanto tempo, eu fiz uma força e aquela parecia a última energia guardada em meu corpo. Sua cabeça saiu e como um salto, seu corpinho saiu junto, aí sim, sem dor.

Recebi você das mãos da querida Míriam Rêgo, essa mulher abençoada que Deus colocou em nosso caminho. Eu nunca vou me esquecer da textura de seu corpo. Por um milésimo de segundo eu achei que você não estava respirando, mas quando ela te virou pra mim, ela disse: “ele está chorando”. Você veio pra mim num chorinho baixinho, soltando barulhinhos que depois se tornaram tão corriqueiros pra nós. Acho que eu nem chorei, tamanha alegria em te conhecer, meu filho amado.

Nada nesse mundo se compara a ver você pela primeira vez. Te abracei e olhei seu rostinho e só me lembro de dizer que você tem as bochechas de seu pai. Seu pai debruçou em mim aos prantos e ali recebemos você, Toquinho, fifico, bizuin, zumzum, baixinho querido. Ali começou nossa nova e bela jornada. Seus olhos esbugalhados lembravam os meus, das primeiras fotos do dia em que eu nasci. Você é cabeludo e tinha um cheiro forte, inconfundível, que eu respirei fundo por horas, para nunca me esquecer.

Elas me ajudaram a deitar na cama, pois eu ainda tinha que parir a placenta, nossa fiel escudeira nesses nove meses. E lá fomos nós, para mais uma aventura. Eu sabia que tinha de parir a placenta, mas não imaginava que seria acometida a mais um teste de tensão e paciência. A danada não saía nem por decreto. Míriam resolveu aplicar ocitocina direto na minha veia. Nada aconteceu. Assim que o cordão umbilical foi cortado (seu pai cortou, super orgulhoso, momento memorável), ela aplicou ocitocina direto no cordão. Nada de virem contrações. Aí aquele olhar apreensivo do momento da banheira voltou em sua feição. Lembro-me dela dizer: “não é possível que passamos por isso tudo pra eu ter de te levar pra maternidade”. Eu perguntei por que e ela disse que se a placenta não saísse, eu precisaria de uma curetagem. Seu pai perguntou quanto tempo a placenta demora pra sair geralmente: “30 minutos”. Havíamos chegado aos 40.

Nessa hora você estava em meu peito soltando barulhinhos deliciosos. Eu estava numa mistura de Éden com essa nova etapa do parto me aterrorizando. Perguntei pra Míriam o que eu precisaria fazer e ela disse que tínhamos de esperar as contrações para que eu fizesse força. Não sei de onde eu tirei isso, não havia nenhuma contração, mas eu fiz uma força que sinceramente, pensei não possuir mais. E a placenta saiu.

Kalu Brum, nossa querida doula, pegou a placenta para fazer uma pintura conforme eu tinha pedido. O clima pesado se esvaiu novamente e dessa vez não mais voltou. Míriam foi me examinar e suturar minha laceração de primeiro grau (não sei se posso chamar de milagre, viva a fisioterapia pélvica que fiz desde as 14, 15 semanas!), Kalu saiu serelepe carregando a placenta e procurando sangue do parto pra fazer a pintura e eu e seu pai extasiados olhando pra você. Depois de passar uma hora agarrado comigo, seu pai tirou a camisa e você foi pro peito dele, coisa mais linda de se ver. Ficamos ali, numa configuração peculiar (sutura, pintura de placenta), mas em um trio delicioso, tudo alinhado no céu.

Um tempo depois (agora não importava mais se 2, 5, 30 minutos) seu pai saiu com você e a enfermeira do Sofia que nos acompanhou no final para te examinar, pesar, medir e colocar uma roupa. Seu apgar no primeiro minuto foi 9, nos cinco seguintes (viva esses 5 minutos), 10! Você nasceu com 50 centímetros e 3,530kg de pura fofura. Você voltou pra mim enrolado numa manta, os olhos abertos buscando o mundo. Eu tinha tomado um banho de gato pra irmos pro alojamento e, na saída, reparei o quarto cheio de sangue, e aquilo tudo já havia se ressignificado.

Demos sorte, não havia ninguém no alojamento e ficamos nós três na primeira noite. Ligamos para seus avós e avisamos que você havia nascido. Os três correram pro hospital pra te conhecer, choramos de alegria e ali se formou um novo núcleo duro de nossa família. À noite recebemos as ilustres visitas da tia Lueny e tio Tiago, com a Livinha e o Ulisses, que, acreditamos, será tão importante em sua vida com o pai dele é na do seu pai. Um pouco depois seu tio Thi apareceu, munido de um lindo (e enorme) vaso de orquídeas. Acabou o horário de visitas e ficamos ali, os três.
Teríamos alta no dia seguinte. Não me lembro direito como foi a noite; uma vez passada a maior descarga de adrenalina que eu já recebi na vida, creio ter dormido, não sei. Você ficou na cama comigo, o que certamente me deixou mais alerta. Seu pai ficou na cama ao lado. Recebemos algumas visitas de enfermeiras na madrugada para examinarem nós dois: tudo certo conosco.

A manhã chegou e você havia feito cocô quatro vezes. Eu e seu pai, marinheiros de primeira viagem, não nos demos conta de que deveríamos observar se você fez xixi e passou batido. Quando as enfermeiras nos perguntaram, não soubemos responder e aí se iniciou uma nova saga. Foi chegando a hora de nossa alta e tudo estava nos conformes com você, exceto pelo fato de que suas fraldas ficaram sequinhas o resto do dia. No início não nos alarmamos tanto e até achei bom passar outra noite lá, pois eu tinha dúvidas com a amamentação e o ambiente me passou segurança, no entanto, com o passar das horas, a angústia tomou conta de mim e do seu pai.

Recebemos nova visita de seus avós e a notícia de que teríamos companhia no quarto naquela noite. No dia seguinte (meu aniversário), caso você não urinasse, as enfermeiras chamariam o pediatra para te examinar. E assim foi. Seu pai havia ido em casa tomar banho - pois com a chegada do novo casal (muito simpático, diga-se de passagem), você não mais podia tomar banho lá -, e eu aguardava ansiosa pelo pediatra. Ele chegou, a única pessoa que eu não gostei no Sofia Feldman – talvez pela circunstância e por ser a primeira vez que experimentarmos a frieza típica de alguns membros da medicina, contrastando com o calor humano e amorosidade que transbordavam ali.

Com suas mãos geladas ele apertou sua barriguinha e você soltou um urro de dor: quis matá-lo. Ele falou que aparentemente não tinha nada de errado com você, mas ele iria prescrever glicose para tentar estimular a urina. E assim foi. Uma das enfermeiras trouxe glicose num copinho e você tomou 1% do negócio, cuspiu o resto. Mas estava ávido para mamar. A tensão foi crescendo. Seu pai voltou e eu chorei de nervoso. Decidi tomar banho, por volta de meio-dia, e deixei você com seu pai. No chuveiro eu chorei e pedi a Deus que cuidasse de sua saúde, supliquei para que você não tenha nenhum problema e saí prostrada de lá. Com um sorriso no rosto seu pai me aguardava na porta. Você tinha feito xixi.

Pronto, iríamos para casa. As enfermeiras foram arrumar a documentação de alta e fazer os últimos exames em você, eu estava de alta desde o dia anterior. Seu avô veio nos encontrar para ajudar o seu pai a instalar a cadeirinha do carro (não tivemos tempo de fazê-lo antes) e eu fui despedir das indescritíveis enfermeiras do Sofia Feldman e receber as últimas recomendações – ali começava toda uma nova etapa da história mais linda de todas.

Entramos no carro e você estava adormecido. Eu fui atrás do seu lado e seu pai e eu conversando sobre o quão inacreditável era aquele nosso momento.

Agora passados exatos 37 dias de seu nascimento, não sei dizer se já consigo processar tudo isso que relatei ou se algum dia conseguirei. Fato é que hoje eu percebo que talvez eu tenha buscado uma “consciência” excessiva ao invés de deixar a coisa fluir. De toda maneira, tudo que ouvimos hoje em dia no Brasil é que quanto menos preparo e uma certa blindagem, mais risco corremos de passar por procedimentos desnecessários em nosso TP (que muitas das vezes sequer é aguardado).

Creio que após essa experiência eu conseguirei enxergar as coisas com mais clareza e quando chegar a hora de tentarmos nosso segundo filho, eu poderei mergulhar ainda mais na experiência desse tal trabalho de parto. Existe muito preconceito e pouco conhecimento acerca do parto normal (que dirá natural) em nosso país, mas ao mesmo tempo, percebo uma parte da militância pendendo para um caminho de quase hostilidade com todo e qualquer desvio de percurso, bem como uma desconfiança enorme dos médicos. Hoje eu entendo as razões disso, mas uma vez vivida a experiência, penso que para o bem das mulheres e dos bebês vindouros, temos de alcançar mais leveza, para que a experiência da maternagem não venha com cobranças tão cruéis pra cima de nós.

Digo isso, pois em meu processo eu fiquei muito chateada quando tivemos de romper a bolsa e aplicar ocitocina, como se aquilo tornasse tudo menos, digamos, digno. Hoje eu penso que talvez não deveríamos ter aplicado a ocitocina, mas não sou capaz de afirmar.

Fato é que não tive o parto romântico que vi propagado nos milhares de relatos que li (claro, há relatos de jornadas tão ou mais difíceis que a minha), mas vivenciei um parto extremamente respeitoso, no qual todos leram meu plano de parto e seguiram à risca tudo o que eu pedi.

Provavelmente eu irei esquecer alguém, mas gostaria de agradecer algumas pessoas fundamentais para essa nossa história/trajetória.

Ao meu amor, marido, amigo e agora pai, obrigada por ter confiado no caminho que percorremos, por tê-lo percorrido conosco. Pela paciência e também pelos momentos de saco cheio em que me ajudou a perceber que eu estava hormonal e não pé no chão (risos). Obrigada por ter topado a empreitada e compreendido que naquele momento crucial o que eu mais precisava era de seu corpo encostado no meu e de entender que não devia ceder ao meu desespero. Obrigada por ser esse pai divertido que nina o Antônio com musiquinhas inventadas na hora, que certamente se eternizarão entre nós. Amo você.

Aos nossos pais, por terem respeitado nossas escolhas e compreendido os caminhos que decidimos trilhar. Agora se inicia uma história na qual vocês três terão esse neto lindo para iluminar ainda mais suas vidas. Acabaram os problemas!

À Míriam Rêgo, essa profissional que trabalha com a alma, meu agradecimento eterno por ter caminhado comigo, acompanhado cada evolução, participado do momento mais intenso de minha vida e me entregado meu filho em meus braços. Eu poderia tratá-la com a formalidade de alguém que pagou por um serviço e o recebeu, mas você fez (e faz) muito mais do que isso. Nunca irei me esquecer do que você fez por mim, pelo meu filho e a minha família, muito obrigada, minha querida. Que Deus te dê vida longuíssima para muitas gestantes terem a sorte que eu tive.

Ao Lucas Barbosa, esse obstetra tão cobiçado e que trabalha aparentemente 24 horas por dia a ponto de esquecer quem eu era quando chegava ao consultório (risos), muito obrigada por ter me guiado, por ter insistido para eu contratar a Míriam, por tudo que explicou para nós com paciência, devoção e sempre comprovando ser um profissional como poucos hoje em dia.

À Mariana, fisioterapeuta, ouvido bom, com quem dividi angústias, ri e troquei muitas figurinhas, nas tagarelices constantes com as barrigudinhas de seu consultório.

Sat Sundri (Luciana), muito mais que uma professora de yoga, essa pessoa que se entrega à nossa gestação, compartilha saberes, nos convoca para experiências que irão nos fortalecer e tornar mais inteiras. Obrigada pela serenidade e por me ensinar o exercício da paciência, tão fundamental para sobreviver aos aparentemente infindáveis 5 minutos que me acompanharam da primeira à última contração. Um beijo em seu coração.

Kalu Brum, essa leonina que na hora H encontra a mansidão e serenidade necessárias para nos acompanhar, obrigada pela paciência, por cada massagem e por estar lá conosco nesse momento. Obrigada por eternizar a placenta que alimentou meu pequeno grande garoto, pelas fotos, por filmar sua chegada.

Renata Santos, moça que eu tão pouco conhecia, me deu um dos maiores presentes: naquela noite em que o acaso nos uniu na recepção da Maternidade Unimed, você rasgou um pedaço de papel, pediu uma caneta para a recepcionista que fazia a minha ficha, anotou os contatos da Míriam e do Lucas, olhou nos meus olhos e disse com toda certeza do mundo que eu deveria procurá-los. Obrigada, flor.

Às minhas queridas companheiras de yoga, um abraço fraterno. Que venham muitos piqueniques com nossos amores.

Às amigas mães e gravidinhas com as quais troquei tanto, às já amigas de longa data, às que se tornaram no processo.

Às senhorinhas da hidroginástica, que deixaram minhas manhãs mais divertidas.

A todos aqueles que se dedicam à luta pelo direito da mulher se empoderar para vivenciar um parto humanizado.

Por último, mas não menos importante, agradeço à equipe da Maternidade Sofia Feldman, em especial às almas iluminadas que cuidam do CPN, onde fomos atendidos com extremo carinho, pelas enfermeiras que trataram o Antônio como um membro da família, acolheram cada dúvida e angústia, sempre com um sorriso no rosto. Eu teria (e terei, se Deus quiser) todos meus filhos lá.

Finalizo dizendo que apesar de não ser uma pessoa religiosa, eu creio em Deus e tenho uma orientação espiritualizada. Digo isso, pois depois de tudo que vivemos, fica difícil desacreditar em uma força maior nos guiando. No dia 9, antes de sair do Sofia, eu anotei em meu celular o nome Angela Gehrke para pesquisar quem foi ela. Faz bem para o processo da escrita certa curiosidade com coisas que não sabemos muito explicar, tais como eu optar por ter ficado em uma suíte de parto com esse nome ao invés de ir pra maior, que estaria à disposição. Angela Gehrke foi uma parteira alemã que veio para o Brasil e trabalhou o conceito de humanização na Associação Comunitária Monte Azul, uma ONG de São Paulo (para saber mais, clique aqui). Lá ela acompanhou mais de 1500 mulheres e conseguiu alcançar um índice de cesáreas de apenas 3%.


Quando eu estava já transtornada na banheira, eu chamei pelo meu pai em silêncio. Meu pai, um alemão teimoso que abriu mão de cuidar de sua saúde e nos deixou em janeiro de 2012 após lutar com um câncer que o levou em menos de três meses. Na agonia do parto eu pensei irritada que ele não estava ali, pois eu não conseguia sentir sua presença. Talvez eu esteja trazendo aquele citado romantismo para o meu parto, mas gosto de pensar que ele e a Sra. Gehrke deram uma forcinha pra você chegar à posição certa e vir para os nossos braços.