quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Antônio do lado de cá – relato de parto

Uma série de siglas nos acompanharam nesses últimos meses: GO (ginecologista), US (ultrassom), DUM (data da última menstruação), CPN (Centro de Parto Normal, da Maternidade Sofia Feldman), DPP (data provável de parto), TP (trabalho de parto). Sua DPP era 19 de julho de 2015, mas algo me dizia que seria no dia 15. Repeti isso obsessivas vezes para o seu pai e alguns profissionais que nos acompanharam de perto. Não quis espalhar para não deixar ninguém ansioso.

Dissemos aos nossos pais e familiares que você viria na segunda quinzena, mais para o final de julho. Na realidade, baseado no período em que sua chegada é considerada a termo (pronto para vir), você poderia nascer entre 28 de junho e 2 de agosto, imagina espalharmos essa previsão, seriam 5 semanas de tensão ao redor, ainda que nossa enfermeira obstétrica tivesse me dito que o mais comum em uma primeira gestação é o bebê nascer em torno da 39ª semana (o que daria 12 de julho).

Eu havia marcado minha qualificação no doutorado para o dia 8 de julho, às duas da tarde. Até a semana anterior, estava tranquila de que você viria depois, no entanto, julho chegou e umas dores novas apareceram junto. Dormir bem não é algo que uma gestante conheça no final da gestação, mas até que aquela coisa de cochilar sentada porque não tinha posição demorou a acontecer, só lá pra 36ª, 37ª semana.

No final de semana dos dias 4 e 5 de julho fui acometida por inúmeros episódios de mal-estar. Dor nas costas que irradiava para a pelve, endurecimento da barriga e muito, muito refluxo. Dormir virou luxo e você começou a ficar menos agitado, o que certamente me preocupou. Bateu aquela sensação de que você estava a caminho e começamos a aventar a hipótese de uma mudança geral nos planos.

Na madrugada de domingo para segunda eu perdi um pouco de sangue e mandei uma foto nada agradável de se ver para a nossa E.O (outra sigla, enfermeira obstétrica). Ela disse que podia ser o tampão mucoso, ou seja, um indicativo de que o TP estava próximo, mas nada muito concreto, poderia ser a qualquer hora, como ao longo da semana seguinte. Tive uma insônia louca e fiquei sem posição na cama, então fui para a sala e lancei todas as notas dos meus alunos e finalizei as pendências na faculdade em que trabalho – no fundo, a gente sabe.

Segunda-feira, dia 6 de julho. Eu havia sido convidada a participar de três bancas de conclusão de curso pela manhã. Seu pai viu como eu estava sentindo dor e ofereceu para eu não ir (ele era o orientador das bancas), mas eu não ia deixar a última pendência para trás. Tomei banho e fui na raça... as dores cada vez mais fortes. Cheguei na sala dos professores e brinquei com os presentes: “achei que ia parir esta madrugada”.

As bancas foram ótimas, no entanto, eu pedi inúmeras vezes para ir ao banheiro e tive de ficar de lado na cadeira, pois as dores estavam cada vez mais agudas. Saí de lá às 13:30 e uma companheira de banca ofereceu carona. Quando descíamos para o carro dela, eu tive de parar no meio do caminho para esperar a onda de dor passar... aí bateu no coração: será que chegou a hora?

Chegando em casa, sua tia Rosane nos aguardava com um rapaz que iria pendurar os quadros em seu quartinho, a última coisa que faltava para a sua chegada. Eu não podia deixar que ela percebesse que eu possivelmente estava iniciando meu TP, mas acho que não fui muito bem-sucedida nisso. Tive de ficar sentada e claramente demonstrava muitos incômodos para mexer. Fui ao banheiro e saiu mais sangue. Mandei mensagem para o seu pai, que ficou apavorado e falou para eu ligar pra E.O. Segurei a onda e esperei ficarmos sozinhos para ligar. (Depois a Rosane me contou que saiu de lá e ligou para a minha sogra - sua avó -, dizendo que eu não tinha mais condições de ficar sozinha. Graças a Deus não deu tempo de muito alarde).

Liguei para nossa E.O-anjo, um capítulo à parte nessa história (uma pessoa que dá sentido ao termo parto humanizado), e ela pediu que eu anotasse o intervalo das dores. Eram 15:10. Anotei até às 16:00. Em intervalos de 5 em 5 minutos (por vezes 5:30, 5:20...), vinham dores que duravam de 30 a 40 segundos. Nesse dia, às 20:00, ela viria aqui em casa com sua equipe para assinarmos o contrato de parto e conhecermos os profissionais que com ela trabalham. Liguei, relatei as anotações e ela disse serem consistentes com um princípio de TP. Ofereceu para vir antes e eu aceitei, estava precisando de alguma confirmação, acho que entrei em estado de negação, afinal, faltavam dois dias pra qualificação!

Ela chegou aqui em casa às 17:00 e após presenciar meu processo de contrações, ofereceu pra fazer um exame de toque. Aceitei. Eu estava com 4 para 5 centímetros de dilatação! Ela soltou um “é, Antônio não vai esperar sua qualificação” e falou para eu avisar seu pai e verificarmos os últimos preparativos. Não acreditei, fiquei mais uns minutos em estado de negação. Liguei para o seu pai, avisei que ele podia finalizar o trabalho, pois ainda ia demorar, mas para ir preparando o território. Antônio estava a caminho! Coração bateu forte, quando conversei com seu pai a ficha caiu um pouquinho.

Voltei para a sala, demorei um pouco pra lembrar o que faltava. Peguei a lista de nossa doula com o que devíamos comprar de alimentos, fui imprimir nosso plano de parto, deixei um bilhete despistando para a nossa ajudante que viria no dia seguinte e embarquei no início de nosso TP, que aqui em casa durou até cerca de uma da manhã.

Nossa mala da maternidade já estava pronta (a de nós três, agora somos três!).

Seu pai chegou umas 18:30 e eu estava espremida no sofá com nossa E.O, que pacientemente aguardava a saga dos 5 minutos (mal sabia eu o que isso iria virar) e auscultava seu coraçãozinho pacientemente de tempos em tempos. Seu pai foi correndo para o escritório lançar as notas de seus alunos. Ele é coordenador do curso e você escolheu justo o dia final de lançamento de notas para chegar... professores e alunos bombardeavam seu e-mail com perguntas e reclamações e ele ficou até irmos para a maternidade tentando adiantar o trabalho para ficar integralmente conosco na parca licença paternidade dele.

Eu e nossa E.O cochilávamos entre as contrações, que eu já achava doloridas, na minha ilusão de que não iria piorar tanto assim... próximo a uma da manhã ela ofereceu pra fazer mais um toque: 6 de dilatação. Podíamos ir para a Maternidade Sofia Feldman ou esperar mais um pouco. Essa avaliação é delicada, porque eu não tinha ideia se iria demorar mais 2, 5, 11 ou 18 horas... ela me disse que eu não estava fazendo uso dos recursos para alívio da dor (banho, andar, etc...) e eu percebi que ficar em casa estava me deixando muito antenada. Eu pensava na faxineira, em nossos pais, no que ficou pendente, em seu pai trabalhando alucinadamente no quarto ao lado.

Pedi para irmos para o Sofia e ela ligou reservando uma suíte na CPN. Sua chegada estava se tornando cada vez mais palpável. Seu pai foi levando as coisas para o carro e fomos. Fui retorcendo pelo caminho e hoje eu penso que foi a melhor coisa termos ido, eu não ia suportar aqueles 30 minutos no carro com as dores mais fortes do que estavam naquele momento.

Ligamos pra doula e uma vez no Sofia nossa E.O foi fazer minha internação e eu fui para o chuveiro. O alívio foi imediato, apesar do frio que estava fazendo. Entramos no quarto Angela Gehrke. Ao lado o quarto Leila Diniz estava sendo limpo, pois uma mulher havia acabado de parir. Nossa E.O me apresentou para a chefe do CPN e as enfermeiras de plantão e ao passar na porta do Leila Diniz, lembro que vi sangue pra tudo quanto é lado e me deu um leve frio na barriga.

Ofereceram pra nós o outro quarto quando estivesse limpo (lá a banheira é bem maior), mas quando ficou pronto eu já estava entrando em certa agonia e não quis sair do Angela. O chuveiro retardou um pouco as contrações e decidi sair.

Aí se inicia uma narrativa que não tem muita hora certa, duração e linearidade. Eu havia lido inúmeros relatos de parto, visto mil vídeos, ido em grupos de gestantes, participado de grupos online de discussão e por alguns momentos quando a coisa começou a pegar, eu arrependi de tanto estudo. A comparação me parecia inevitável. Que partolândia o quê, parto orgásmico??? Tudo me parecia distante e irreal. As dores se intensificavam, mas não saíamos da frequência de 5 minutos, o que também colaborou para meu estado de consciência.

Lembro-me do filme A Hora do Lobo, de Ingmar Bergman. O personagem de Max von Sydow padece de uma insônia terrível. Em determinado momento, na casa isolada em que mora com a esposa, no meio da madrugada, ele a convoca a experimentar a angústia de esperar um minuto inteiro passar. A sequência dura um minuto exato. Em um silêncio ensurdecedor, aguardamos a passagem dos 60 segundos enquanto o personagem interrompe algumas vezes para dizer quanto já foi. Parece uma eternidade.

Eu sabia que a cada contração, após cada avanço, eu tinha de aguardar 5 minutos (ou 300 segundos) para uma nova etapa do processo.

Nossa doula chegou às 4 da manhã, desse horário me lembro bem, pois eu olhei para o relógio (que, aliás, devia ficar fora do alcance das gestantes). Seu pai e nossa E.O cochilavam e eu havia descoberto a bola de pilates, a melhor invenção para TPs. Após me cumprimentar com um doce “oi, meu amor”, ela revolucionou o ambiente e deu sentido ao termo ‘doula’ (do grego, “mulher que serve”). Ela apagou as luzes, acendeu uma luzinha amarela no canto da parede, colocou um aquecedor próximo a mim, pegou um óleo com uma essência que é a cara dela, ofereceu comida para seu pai, me trouxe um copo d´água e iniciou os trabalhos.

Eu não sabia, mas ali se seguiriam mais 10 longas horas e exatos 27 minutos até você chegar. Nossa doula sentou ao meu lado e até eu iniciar o período expulsivo, quando ela deixou seu pai comigo e foi filmar a sua chegada, ela massageou as minhas costas pacientemente em todas (repito, todas) as minhas contrações. Calmamente ela passava as mãos no óleo, levantava meu vestido e fazia uma massagem circular enquanto eu retesava o corpo inteiro e sentia que não ia aguentar muito tempo. Essa massagem fez toda a diferença do mundo... ainda levemente consciente, me lembrei de ter lido sobre esses métodos de alívio e de pensar em como isso faz sentido. Depois lembrei que no sistema privado as mulheres ficam na horizontal e comentei com a doula que julgava isso criminoso. Eu já estava com muita dor, imagina isso sem conforto?

Uma vez no Sofia fiz uso de tudo que podia e embarquei em todas as sugestões das duas (E.O e doula): bola, chuveiro, banheira, rebolado, caminhada, deitada de lado (essa, disparado, a pior), banqueta, rebozo. Seguíamos, religiosamente, de 5 em 5 minutos. Não me lembro quando, mas fizemos outros toques... acho que foram dois, de 8 e de 9 pra 10 centímetros.

Eu lembro de ter olhado as horas três vezes após a chegada da nossa doula: em torno de 7 da manhã, meio-dia, uma e pouca da tarde. Em uma dessas vezes ela me disse para ignorar o relógio... eu seguia num misto de muita consciência e mergulhos num estado em que não conseguia falar nada mais, apenas acenar “sim” ou “não”.

De tempos em tempos ela me oferecia algo para comer. Lembro que comi duas gelatinas, tomei água de coco, água e uns três biscoitos. Em algum momento, ela me deu uma batata Ruffles que me deu um enjoo tremendo. Lá para as tantas, quase em vias de desistir, ela colocou um pedaço de Diamante Negro na minha boca para eu recuperar as energias. Na minha concepção, não tinha energia mais, mas o chocolate desceu muito bem.

Seu pai apanhou um pouco de mim. Acho que a intimidade fez com que eu descontasse nele o nervosismo inteiro. É difícil demais descrever as sensações que nos acompanham em um trabalho de parto, até porque, já percebi que cada mulher é de um jeito. Há as que gritam, há as que se calam e ficam em estado meditativo, há os partos que duram duas horas, há partos que duram vinte, como o nosso (na realidade, em TP ativo foram 13). Fato é que quando a manhã veio chegando, eu comecei a experimentar uma exaustão física e emocional enorme. Não saíamos dos 5 minutos.

Não lembro mais em qual momento (sei que foi após o rebozo), nossa E.O sugeriu romper a minha bolsa para tentarmos acelerar o TP. Eu estava na posição deitada, com uma dor absurda, e ela havia acabado de fazer outro toque (e como dói o tal do toque). Aceitei. Bolsa rompida, nada muito diferente aconteceu. 5 minutos... 5 minutos... 5 minutos... Nossa E.O. de vez em quando soltava: “Antônio, siga as águas”... na hora não sei o que pensei, mas olhando em retrospecto, isso é bem bonito, só que você teimava em não ouvir.

Em alguma hora que não me recordo mais, nossa doula me levou pra passear lá fora. Eu parava de 5 em 5 pra gemer e notei um misto de curiosos olhando, com outros que certamente já haviam passado por aquilo e passavam por mim encarando meu processo com total naturalidade. Nosso obstetra estava em uma mesa com outro médico e acenou pra nós sorrindo enquanto eu agarrei numa pilastra. Me encanta esse clima do Sofia Feldman. Claro, nem tudo são rosas e há deficiências típicas de um hospital do SUS, mas me sinto muito afortunada por toda a assistência que tivemos.

Lá pelas tantas, acho que o dia já havia amanhecido, nossa E.O. sugeriu ocitocina. Fiquei com medo, já havia lido que a ocitocina sintética acentua muito as dores pela sua ação de intensificar as contrações, mas ela me aliviou e disse que colocaria uma dose mínima. Lembro de tê-la ouvido dizer para a enfermeira do Sofia que era pra colocar em 5 (tudo ao redor era 5), mas lá na frente, acho que no expulsivo, eu a ouvi mencionar o número 24, algo assim.

A ocitocina não surtiu muito efeito. Deixou as contrações mais doloridas, é fato. Assim que senti o líquido gelado em minha veia, veio uma contração muito, muito doída. Mas não saímos dos 5 minutos. Meu corpo começava a desfalecer. O processo é todo muito intenso... a gente sente a barriga endurecendo, o corpo vai retesando inteiro, as dores vão das costas (próximo à região renal) e irradiam para a pelve. Mais para o final, eu sentia o Antônio retorcendo, empinando a bundinha e parecia que eu ia rasgar inteira. O pavor tomou conta.

No último toque, que constatou que eu estava com 9 para 10 centímetros de dilatação, nossa E.O., com uma feição preocupada, disse que sua cabeça não estava na posição correta para nascer. Meu mundo caiu. Confesso não recordar direito da sequência de diálogo... creio que ela queria que esperássemos para ver o que acontecia, mas naquele ponto eu já estava à beira do colapso físico. Ao findar de cada contração eu quase dormia de tão exausta e ainda que enclausurada nos 5 minutos, a impressão era da dor me acompanhar sem trégua.

Fui ficando nervosa e extremamente consciente. Pensei: se sua cabeça está na posição errada, de que adiantam as contrações? E para piorar, vieram os puxos. Eu já não sabia se eu forçava de propósito ou se fazer força havia se tornado o único movimento possível. Nossa doula disse que baseada nos sons que eu emitia (muito guturais, diga-se de passagem), eram os puxos. Os lapsos de consciência me puxavam pra baixo: eu estava com dores lancinantes e elas não iriam me levar a lugar nenhum. Se eu tinha chegado ao ponto dos puxos, de que adiantaria fazer força se você não iria descer?

Entrei assumidamente em pânico e em contato com um lado meu que eu não gostaria de reencontrar. Xinguei os três de todas as formas. Seu pai, super carinhoso, não conseguia acertar. Ele me tocava, eu pedia para não tocar. Ele me fazia uma pergunta, eu respondia urrando com impaciência. Uma hora nossa doula chegou no meu ouvido e me disse palavras de incentivo, que eu estava quase no final, que faltava pouco. Eu percebi que já devia ser a quarta vez que ela dizia, olhei furibunda pra ela e disse: “têm 3 horas que você está dizendo isso”.

Aí chegou a vez de ser grosseira com a E.O., o ser mais calmo do mundo. Entrei na banheira, meu sonho de parto, mas ela era muito estreita e me obrigou a ficar numa posição horrível na horizontal, e as dores intensificaram. Eu gritava como nunca na vida, emitindo sons primitivos que depois me deixaram com muita vergonha de andar pelos corredores do CPN. Ela se posicionou de frente para mim e observava a sua saída iminente a cada contração. Eu vi em seu olhar a preocupação e aquilo me desestruturou completamente. Pedi pra sair da banheira. Ela ofereceu a banqueta e eu, um outro eu saído das cavernas, vociferei: “eu detestei a banqueta”.

Não lembro como, mas fui parar na banqueta. Seu pai se posicionou atrás de mim, nossa doula (que também é fotógrafa) ficou diante de mim, ao lado da E.O., e ali eu protagonizei momentos que, hoje, são hilários, mas na hora foram muito trágicos.

Conversando com outras mães recentes, descobri que, à exceção das abençoadas que passaram de forma plácida pelo período expulsivo, nós falamos coisas que nos aproximam da insanidade e do patético nesse momento. Não me recordo tudo (ainda bem), mas sei que eu comecei a pedir anestesia, pedi socorro, falei que não tinha competência para parto natural (lembro-me do olhar de tristeza da doula nessa hora), que eu estava fracassando, e enlouqueci: pedi cesárea. Depois seu pai disse que aquilo me salvou, pois o fez perceber que eu estava em estado de delírio completo, então ele ignorou.
Eu comecei a dizer que os três estavam me ignorando, que eu havia desistido, que não tinha a menor chance de eu conseguir, até porque você não estava na posição. No momento mais insano, eu agarrei o braço do seu pai e pedi pra ele enfiar um pano com clorofórmio no meu rosto. Pedi pra me doparem.

É necessário ter coragem para relatar esses momentos aqui. Lembro-me de ter lido relatos de parto em que esses momentos ou eram muito romantizados ou as gestantes foram abençoadas, porque não me recordo de alguém relatar algo assim tão sofrido. Acho que essa romantização também me atrapalhou durante meu TP. Sei que tudo se resumia no fato de sua cabecinha não estar na posição. Eu tinha certeza que daria errado e no final eu seria submetida a uma cesárea ou algo do tipo, então pra que prolongar o sofrimento?

Por fim, depois de muito chilique meu, nossa E.O. decidiu chamar uma obstetra para fazer uma manobra e colocá-lo na posição correta. Eu esbravejei mais um tanto, pois soube que ela estava num atendimento e gritei que não conseguiria esperar por ela. A passagem dos 5 minutos se tornou um calvário.

De repente, e talvez eu estivesse na porta de entrada da tal partolândia, pois eu não lembro das reações dos três, nossa doula e nossa E.O. deram um grito “coroou!!!!”, o que significava que sua cabecinha tinha começado a aparecer, ou seja, você tinha chegado na posição correta. Como um filme (e, repito, esse é o tempo suspenso em que eu me encontrava, não faço a menor ideia da duração real dos fatos), a obstetra apareceu na porta. Graças à sua consulta, ela não chegou a tempo de movê-lo, você o fez por nós.

Ali eu atingi uma outra dimensão. Lembro que ao ver a reação das duas o meu corpo mudou e eu reencontrei a leveza (ainda que estivesse em meio a uma dor excruciante). Veio outra contração e elas me disseram pra sentir sua cabeça, do jeito que eu pedi no plano de parto. Antônio, eu nunca serei capaz de descrever o que foi sentir a beiradinha de sua linda cabecinha. Sei que ali eu devo ter perdido umas dez toneladas e ganhado uma injeção inacreditável de energia. Acalmei e parei de xingar tudo e todos. Chorei e disse “vem, meu filho”.

Uma enfermeira do Sofia apareceu e agora havia quatro mulheres observando a sua chegada e seu pai colado em mim. Nossa doula ofereceu pra me mostrar sua cabecinha chegando e tirou uma foto. Ainda estava tão pouquinho pra fora que eu quase esmoreci outra vez, mas resolvi aguardar os 5 minutos. Não sei quanto tempo durou o expulsivo. Sei que o tal círculo de fogo que eu havia lido nos relatos mais parecia um maçarico aceso em mim, pois eu senti cada centímetro de sua cabeça despontando e doeu muito, no entanto, eu agora havia me tornado uma mãe obstinada em te ver.

Não sei quantas contrações foram necessárias, mas me lembro da nossa E.O. pedindo o carrinho de parto (algo do tipo) pra enfermeira e as luvas. Ela sorriu e disse “como eu quero vestir essas luvas”. E nós sorrimos, eu sorri novamente. Depois de sabe-se lá quanto tempo, eu fiz uma força e aquela parecia a última energia guardada em meu corpo. Sua cabeça saiu e como um salto, seu corpinho saiu junto, aí sim, sem dor.

Recebi você das mãos da querida Míriam Rêgo, essa mulher abençoada que Deus colocou em nosso caminho. Eu nunca vou me esquecer da textura de seu corpo. Por um milésimo de segundo eu achei que você não estava respirando, mas quando ela te virou pra mim, ela disse: “ele está chorando”. Você veio pra mim num chorinho baixinho, soltando barulhinhos que depois se tornaram tão corriqueiros pra nós. Acho que eu nem chorei, tamanha alegria em te conhecer, meu filho amado.

Nada nesse mundo se compara a ver você pela primeira vez. Te abracei e olhei seu rostinho e só me lembro de dizer que você tem as bochechas de seu pai. Seu pai debruçou em mim aos prantos e ali recebemos você, Toquinho, fifico, bizuin, zumzum, baixinho querido. Ali começou nossa nova e bela jornada. Seus olhos esbugalhados lembravam os meus, das primeiras fotos do dia em que eu nasci. Você é cabeludo e tinha um cheiro forte, inconfundível, que eu respirei fundo por horas, para nunca me esquecer.

Elas me ajudaram a deitar na cama, pois eu ainda tinha que parir a placenta, nossa fiel escudeira nesses nove meses. E lá fomos nós, para mais uma aventura. Eu sabia que tinha de parir a placenta, mas não imaginava que seria acometida a mais um teste de tensão e paciência. A danada não saía nem por decreto. Míriam resolveu aplicar ocitocina direto na minha veia. Nada aconteceu. Assim que o cordão umbilical foi cortado (seu pai cortou, super orgulhoso, momento memorável), ela aplicou ocitocina direto no cordão. Nada de virem contrações. Aí aquele olhar apreensivo do momento da banheira voltou em sua feição. Lembro-me dela dizer: “não é possível que passamos por isso tudo pra eu ter de te levar pra maternidade”. Eu perguntei por que e ela disse que se a placenta não saísse, eu precisaria de uma curetagem. Seu pai perguntou quanto tempo a placenta demora pra sair geralmente: “30 minutos”. Havíamos chegado aos 40.

Nessa hora você estava em meu peito soltando barulhinhos deliciosos. Eu estava numa mistura de Éden com essa nova etapa do parto me aterrorizando. Perguntei pra Míriam o que eu precisaria fazer e ela disse que tínhamos de esperar as contrações para que eu fizesse força. Não sei de onde eu tirei isso, não havia nenhuma contração, mas eu fiz uma força que sinceramente, pensei não possuir mais. E a placenta saiu.

Kalu Brum, nossa querida doula, pegou a placenta para fazer uma pintura conforme eu tinha pedido. O clima pesado se esvaiu novamente e dessa vez não mais voltou. Míriam foi me examinar e suturar minha laceração de primeiro grau (não sei se posso chamar de milagre, viva a fisioterapia pélvica que fiz desde as 14, 15 semanas!), Kalu saiu serelepe carregando a placenta e procurando sangue do parto pra fazer a pintura e eu e seu pai extasiados olhando pra você. Depois de passar uma hora agarrado comigo, seu pai tirou a camisa e você foi pro peito dele, coisa mais linda de se ver. Ficamos ali, numa configuração peculiar (sutura, pintura de placenta), mas em um trio delicioso, tudo alinhado no céu.

Um tempo depois (agora não importava mais se 2, 5, 30 minutos) seu pai saiu com você e a enfermeira do Sofia que nos acompanhou no final para te examinar, pesar, medir e colocar uma roupa. Seu apgar no primeiro minuto foi 9, nos cinco seguintes (viva esses 5 minutos), 10! Você nasceu com 50 centímetros e 3,530kg de pura fofura. Você voltou pra mim enrolado numa manta, os olhos abertos buscando o mundo. Eu tinha tomado um banho de gato pra irmos pro alojamento e, na saída, reparei o quarto cheio de sangue, e aquilo tudo já havia se ressignificado.

Demos sorte, não havia ninguém no alojamento e ficamos nós três na primeira noite. Ligamos para seus avós e avisamos que você havia nascido. Os três correram pro hospital pra te conhecer, choramos de alegria e ali se formou um novo núcleo duro de nossa família. À noite recebemos as ilustres visitas da tia Lueny e tio Tiago, com a Livinha e o Ulisses, que, acreditamos, será tão importante em sua vida com o pai dele é na do seu pai. Um pouco depois seu tio Thi apareceu, munido de um lindo (e enorme) vaso de orquídeas. Acabou o horário de visitas e ficamos ali, os três.
Teríamos alta no dia seguinte. Não me lembro direito como foi a noite; uma vez passada a maior descarga de adrenalina que eu já recebi na vida, creio ter dormido, não sei. Você ficou na cama comigo, o que certamente me deixou mais alerta. Seu pai ficou na cama ao lado. Recebemos algumas visitas de enfermeiras na madrugada para examinarem nós dois: tudo certo conosco.

A manhã chegou e você havia feito cocô quatro vezes. Eu e seu pai, marinheiros de primeira viagem, não nos demos conta de que deveríamos observar se você fez xixi e passou batido. Quando as enfermeiras nos perguntaram, não soubemos responder e aí se iniciou uma nova saga. Foi chegando a hora de nossa alta e tudo estava nos conformes com você, exceto pelo fato de que suas fraldas ficaram sequinhas o resto do dia. No início não nos alarmamos tanto e até achei bom passar outra noite lá, pois eu tinha dúvidas com a amamentação e o ambiente me passou segurança, no entanto, com o passar das horas, a angústia tomou conta de mim e do seu pai.

Recebemos nova visita de seus avós e a notícia de que teríamos companhia no quarto naquela noite. No dia seguinte (meu aniversário), caso você não urinasse, as enfermeiras chamariam o pediatra para te examinar. E assim foi. Seu pai havia ido em casa tomar banho - pois com a chegada do novo casal (muito simpático, diga-se de passagem), você não mais podia tomar banho lá -, e eu aguardava ansiosa pelo pediatra. Ele chegou, a única pessoa que eu não gostei no Sofia Feldman – talvez pela circunstância e por ser a primeira vez que experimentarmos a frieza típica de alguns membros da medicina, contrastando com o calor humano e amorosidade que transbordavam ali.

Com suas mãos geladas ele apertou sua barriguinha e você soltou um urro de dor: quis matá-lo. Ele falou que aparentemente não tinha nada de errado com você, mas ele iria prescrever glicose para tentar estimular a urina. E assim foi. Uma das enfermeiras trouxe glicose num copinho e você tomou 1% do negócio, cuspiu o resto. Mas estava ávido para mamar. A tensão foi crescendo. Seu pai voltou e eu chorei de nervoso. Decidi tomar banho, por volta de meio-dia, e deixei você com seu pai. No chuveiro eu chorei e pedi a Deus que cuidasse de sua saúde, supliquei para que você não tenha nenhum problema e saí prostrada de lá. Com um sorriso no rosto seu pai me aguardava na porta. Você tinha feito xixi.

Pronto, iríamos para casa. As enfermeiras foram arrumar a documentação de alta e fazer os últimos exames em você, eu estava de alta desde o dia anterior. Seu avô veio nos encontrar para ajudar o seu pai a instalar a cadeirinha do carro (não tivemos tempo de fazê-lo antes) e eu fui despedir das indescritíveis enfermeiras do Sofia Feldman e receber as últimas recomendações – ali começava toda uma nova etapa da história mais linda de todas.

Entramos no carro e você estava adormecido. Eu fui atrás do seu lado e seu pai e eu conversando sobre o quão inacreditável era aquele nosso momento.

Agora passados exatos 37 dias de seu nascimento, não sei dizer se já consigo processar tudo isso que relatei ou se algum dia conseguirei. Fato é que hoje eu percebo que talvez eu tenha buscado uma “consciência” excessiva ao invés de deixar a coisa fluir. De toda maneira, tudo que ouvimos hoje em dia no Brasil é que quanto menos preparo e uma certa blindagem, mais risco corremos de passar por procedimentos desnecessários em nosso TP (que muitas das vezes sequer é aguardado).

Creio que após essa experiência eu conseguirei enxergar as coisas com mais clareza e quando chegar a hora de tentarmos nosso segundo filho, eu poderei mergulhar ainda mais na experiência desse tal trabalho de parto. Existe muito preconceito e pouco conhecimento acerca do parto normal (que dirá natural) em nosso país, mas ao mesmo tempo, percebo uma parte da militância pendendo para um caminho de quase hostilidade com todo e qualquer desvio de percurso, bem como uma desconfiança enorme dos médicos. Hoje eu entendo as razões disso, mas uma vez vivida a experiência, penso que para o bem das mulheres e dos bebês vindouros, temos de alcançar mais leveza, para que a experiência da maternagem não venha com cobranças tão cruéis pra cima de nós.

Digo isso, pois em meu processo eu fiquei muito chateada quando tivemos de romper a bolsa e aplicar ocitocina, como se aquilo tornasse tudo menos, digamos, digno. Hoje eu penso que talvez não deveríamos ter aplicado a ocitocina, mas não sou capaz de afirmar.

Fato é que não tive o parto romântico que vi propagado nos milhares de relatos que li (claro, há relatos de jornadas tão ou mais difíceis que a minha), mas vivenciei um parto extremamente respeitoso, no qual todos leram meu plano de parto e seguiram à risca tudo o que eu pedi.

Provavelmente eu irei esquecer alguém, mas gostaria de agradecer algumas pessoas fundamentais para essa nossa história/trajetória.

Ao meu amor, marido, amigo e agora pai, obrigada por ter confiado no caminho que percorremos, por tê-lo percorrido conosco. Pela paciência e também pelos momentos de saco cheio em que me ajudou a perceber que eu estava hormonal e não pé no chão (risos). Obrigada por ter topado a empreitada e compreendido que naquele momento crucial o que eu mais precisava era de seu corpo encostado no meu e de entender que não devia ceder ao meu desespero. Obrigada por ser esse pai divertido que nina o Antônio com musiquinhas inventadas na hora, que certamente se eternizarão entre nós. Amo você.

Aos nossos pais, por terem respeitado nossas escolhas e compreendido os caminhos que decidimos trilhar. Agora se inicia uma história na qual vocês três terão esse neto lindo para iluminar ainda mais suas vidas. Acabaram os problemas!

À Míriam Rêgo, essa profissional que trabalha com a alma, meu agradecimento eterno por ter caminhado comigo, acompanhado cada evolução, participado do momento mais intenso de minha vida e me entregado meu filho em meus braços. Eu poderia tratá-la com a formalidade de alguém que pagou por um serviço e o recebeu, mas você fez (e faz) muito mais do que isso. Nunca irei me esquecer do que você fez por mim, pelo meu filho e a minha família, muito obrigada, minha querida. Que Deus te dê vida longuíssima para muitas gestantes terem a sorte que eu tive.

Ao Lucas Barbosa, esse obstetra tão cobiçado e que trabalha aparentemente 24 horas por dia a ponto de esquecer quem eu era quando chegava ao consultório (risos), muito obrigada por ter me guiado, por ter insistido para eu contratar a Míriam, por tudo que explicou para nós com paciência, devoção e sempre comprovando ser um profissional como poucos hoje em dia.

À Mariana, fisioterapeuta, ouvido bom, com quem dividi angústias, ri e troquei muitas figurinhas, nas tagarelices constantes com as barrigudinhas de seu consultório.

Sat Sundri (Luciana), muito mais que uma professora de yoga, essa pessoa que se entrega à nossa gestação, compartilha saberes, nos convoca para experiências que irão nos fortalecer e tornar mais inteiras. Obrigada pela serenidade e por me ensinar o exercício da paciência, tão fundamental para sobreviver aos aparentemente infindáveis 5 minutos que me acompanharam da primeira à última contração. Um beijo em seu coração.

Kalu Brum, essa leonina que na hora H encontra a mansidão e serenidade necessárias para nos acompanhar, obrigada pela paciência, por cada massagem e por estar lá conosco nesse momento. Obrigada por eternizar a placenta que alimentou meu pequeno grande garoto, pelas fotos, por filmar sua chegada.

Renata Santos, moça que eu tão pouco conhecia, me deu um dos maiores presentes: naquela noite em que o acaso nos uniu na recepção da Maternidade Unimed, você rasgou um pedaço de papel, pediu uma caneta para a recepcionista que fazia a minha ficha, anotou os contatos da Míriam e do Lucas, olhou nos meus olhos e disse com toda certeza do mundo que eu deveria procurá-los. Obrigada, flor.

Às minhas queridas companheiras de yoga, um abraço fraterno. Que venham muitos piqueniques com nossos amores.

Às amigas mães e gravidinhas com as quais troquei tanto, às já amigas de longa data, às que se tornaram no processo.

Às senhorinhas da hidroginástica, que deixaram minhas manhãs mais divertidas.

A todos aqueles que se dedicam à luta pelo direito da mulher se empoderar para vivenciar um parto humanizado.

Por último, mas não menos importante, agradeço à equipe da Maternidade Sofia Feldman, em especial às almas iluminadas que cuidam do CPN, onde fomos atendidos com extremo carinho, pelas enfermeiras que trataram o Antônio como um membro da família, acolheram cada dúvida e angústia, sempre com um sorriso no rosto. Eu teria (e terei, se Deus quiser) todos meus filhos lá.

Finalizo dizendo que apesar de não ser uma pessoa religiosa, eu creio em Deus e tenho uma orientação espiritualizada. Digo isso, pois depois de tudo que vivemos, fica difícil desacreditar em uma força maior nos guiando. No dia 9, antes de sair do Sofia, eu anotei em meu celular o nome Angela Gehrke para pesquisar quem foi ela. Faz bem para o processo da escrita certa curiosidade com coisas que não sabemos muito explicar, tais como eu optar por ter ficado em uma suíte de parto com esse nome ao invés de ir pra maior, que estaria à disposição. Angela Gehrke foi uma parteira alemã que veio para o Brasil e trabalhou o conceito de humanização na Associação Comunitária Monte Azul, uma ONG de São Paulo (para saber mais, clique aqui). Lá ela acompanhou mais de 1500 mulheres e conseguiu alcançar um índice de cesáreas de apenas 3%.


Quando eu estava já transtornada na banheira, eu chamei pelo meu pai em silêncio. Meu pai, um alemão teimoso que abriu mão de cuidar de sua saúde e nos deixou em janeiro de 2012 após lutar com um câncer que o levou em menos de três meses. Na agonia do parto eu pensei irritada que ele não estava ali, pois eu não conseguia sentir sua presença. Talvez eu esteja trazendo aquele citado romantismo para o meu parto, mas gosto de pensar que ele e a Sra. Gehrke deram uma forcinha pra você chegar à posição certa e vir para os nossos braços.